Dresden, Bona, Kassel: o cenário repete-se à segunda-feira. Os autodenominados “Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente” (PEGIDA) descem à rua. Empunhando a bandeira nacional e gritando “Wir sind das Volk”, nós somos o povo, o slogan das manifestações que em 1989 fizeram vacilar o regime da RDA e levaram à queda do Muro de Berlim.
Os sinais de alarme tocaram e políticos e jornalistas, perplexos, dividem-se sobre a reacção a tomar face a este movimento social. Dialogar? Ignorá-los? Ostracizá-los?
Em democracia a “rua” não deve ser desprezada, não porque tenha razão, mas para se entender porque se misturam populismos de direita nas suas diversas nuances – neonazis, hooligans, nacionalistas – e cidadãos “comuns”. Como explicar este movimento social numa sociedade rica e de aparente bem estar como a alemã? Angústia perante a vulnerabilidade das sociedades ocidentais face às ameaças sem precedentes colocadas pelo terrorismo islâmico? Medo das “células adormecidas” que os serviços secretos dizem existir no país? Receio dos refugiados que têm chegado às centenas de milhar? Apreensão face à nova onda de emigração?
Vamos por partes. Não se pode enterrar a cabeça irresponsavelmente na areia e fingir que não se vê que, sob a capa politicamente correcta do multiculturalismo, se permitiram entorses aos valores de uma sociedade livre e democrática.
À sombra do Estado de Direito alemão existe, por exemplo, uma justiça paralela. Em Berlim ou Bremen os problemas de violência familiar, em famílias muçulmanas, são resolvidos, à luz da Sharia, por “Juízes de Paz” que são em simultâneo imãs. Invocando o argumento da liberdade religiosa, em pleno século XXI, as mulheres continuam a ser forçadas a aceitar maus-tratos, a ser submissas, a casar contra a sua vontade, tudo sob ameaça de violência física e psicológica. Para demasiados machos na Alemanha a “honra” de um homem fica entre as pernas de uma mulher. Só em 2014, 15 mulheres foram vítimas de hediondos “crimes de honra”, praticados nalguns casos com a conivência e a aprovação das famílias. E face a uma quase indiferença da sociedade.
Os ataques de 11 de Setembro – planeados em Hamburgo –, a série sucessiva de atentados que foram sendo desmantelados pela polícia nesta última década, os diversos episódios de violência protagonizados por salafistas e a partida de centenas de jovens muçulmanos residentes na Alemanha para se juntarem ao ISIS, contribuíram para aumentar o desconforto do convívio.
Estes factos não podem ser ignorados, como também não pode ser ignorado que o que move o PEGIDA e a AfD, Alternativa para a Alemanha, não é uma questão religiosa. A suposta “islamização” da sociedade ou fanatismo fundamentalista é uma superficie de projecção para um profundo mal-estar de ordem social, política e económica.
Num gesto de defesa intransigente da democracia, Josef Schuster, presidente do Conselho Central dos Judeus na Alemanha, saiu em defesa da comunidade muçulmana, considerando “absolutamente inaceitável que se instrumentalize o radicalismo islâmico para atacar toda uma religião” e nela os Ausländer, os estrangeiros, que a praticam. Nas palavras das chanceler Angela Merkel, “não há lugar na Alemanha para o incitamento ao ódio”. Porém, nem a chanceler nem os partidos da coligação governamental de Berlim, ou seja, o arco do poder, terão entendido (ou querido entender) o que se esconde por detrás da retórica anti-islâmica e xenófoba. Muitos dos que enchem as ruas às segundas-feiras são movidos pelo ressentimento. O Instituto Nacional de Estatística alemão publicou há pouco tempo os dados relativos a 2013, e neles pode ver-se que um em cada cinco alemães vivia em situação de exclusão social ou de pobreza absoluta. Em números reais são 16,2 milhões de pessoas. O modelo económico alemão está a esfriar.
A isto se soma a crónica dificuldade de a Alemanha, apesar da nova vaga de imigrantes causada pela crise financeira europeia e dos benefícios para a sua economia desta leva de profissionais qualificados, se aceitar como um país de imigração e que os que os “Gastarbeiter”, os “trabalhadores convidados” (uma palavra que me causa calafrios), se radicaram há muito no país
Apesar dos movimentos migratórios do pós-guerra se terem iniciado na década de 60 do século passdo, e de a Alemanha ser o país da União Europeia com maior número de imigrantes e refugiados, só em 2005 teve a primeira de Lei de Imigração (e apenas com coligação SPD-Verdes se alterou a lei da nacionalidade, passando do direito de sangue para o direito de solo, facilitando a obtenção da nacionalidade por estrangeiros). Vinte por cento dos homens e mulheres que vivem na Alemanha têm origem estrangeira, mas foi preciso o Mundial de 2006 para que houvesse uma mudança de paradigma do Wir (nós) – Ihr (vocês) para o Ihr sind Wir (vocês são nós). Mudança incompleta no entanto.
Sinal inequívoco destes mixed feelings na sociedade germânica é a proposta recente dos democratas-cristãos da Baviera (CSU) para que os estrangeiros residentes na Alemanha falassem em casa apenas alemão (como se fosse possível aplicar tal medida ou fiscalizá-la). Dando mostras de muito bom senso, a opinião publicada e os cartoonistas reduziram essa proposta àquilo que é: rídícula.
No meio da apreensão que as tensões sociais na Alemanha nos devem causar, e às quais a política terá de dar resposta, há sinais de esperança e de clara maturidade da democracia alemã. E esses vêm do cerne da sociedade. Cada vez que o PEGIDA desce à rua, o número de contra-manifestantes tem sido claramente superior. Esta segunda-feira a Semperoper em Dresden, em frente à qual os populistas de direita se congregavam, desligou as luzes da sua fachada. Em Munique 12 mil pessoas manifestaram-se contra o PEGIDA e contra “a idiotização do Ocidente”, e na Ópera da cidade onde Hitler iniciou o seu percurso para chegar ao poder pendiam entre as colunas três faixas: “humanidade, respeito, diversidade”.
Jornalista, vive na Alemanha