Neste artigo, tentamos abordar sucintamente algumas das ideias emanadas da proposta governamental de alteração dos estatutos das Ordens profissionais. Neste caso falaremos das que nos representam — a Ordem dos Médicos (OM) e a Ordem dos Médicos Dentistas (OMD) -, sendo que o tema exige muito mais profundidade e alargado tratamento.

Desde logo pela falta de bom senso do Governo em se propor a alterar estes Estatutos das Ordens “por atacado”, em duas sucessivas levas de 8 e 12 Ordens, não cumprindo quaisquer prazos dignos desse nome, na prática dando às Ordens dois ou três dias úteis para se pronunciarem, sobre documentos com dezenas de páginas, no total são mais de setecentas…, cuja profundidade e importância normativa se adivinham.

É que, com esta atitude, o Governo fica muito mal na fotografia, pois na verdade, das duas uma, ou não quis realmente ouvir as Ordens, ou está tão desorganizado que mostra ao País um triste espetáculo de caos e desnorte legislativo que atrapalha todas as regras de urbanidade institucional e desconsidera todas as Ordens “em pacote”. Ordens essas que legalmente têm funções delegadas pelo Estado, cujo Governo as tutela e as deve respeitar. Infelizmente este tipo de comportamento é recorrente, não é exclusivo deste Governo, e a todos nos envergonha, porque afinal menoriza o Estado.

O objetivo apontado pelo Governo é o de cumprir as recomendações nacionais e internacionais, sendo apontada como uma das reformas com maior relevo no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Segundo o Governo, esta reforma  já estava a ser reclamada pela Comissão Europeia, pela OCDE e pela Autoridade da Concorrência.

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Para começar, devemos ter a noção de que o PRR não é uma dádiva, mas sim um empréstimo cuja tendência será sufocar crescentemente o País e  se destina a acelerar a reconversão produtiva para a automação. Neste sentido, pior ainda será a alteração aos estatutos,  pois acentua o retirar aos profissionais a capacidade de executar com excelência, com todo o  domínio técnico-científico, o seu trabalho, nivelando por baixo aquilo que em Portugal tem sido nivelado por cima, e falamos aqui da Medicina e da Medicina Dentária que, como sabemos, dão cartas por essa Europa fora.   Para piorar, com o novo Estatuto, as profissões serão reguladas por uma minoria de profissionais, apenas 40%, e por uma maioria de não inscritos na Ordem e portanto não escrutinados pelos seus pares. Sim, por absurdo, um respeitável florista ou um dedicado arquiteto, podem vir a dirigir a Ordem dos Médicos. Haja bom senso!

Por exemplo os novos Órgãos Superiores destas duas Ordens, designados Conselhos de Supervisão, serão pagos a peso de ouro, havendo obviamente um interesse de criação de “jobs for the boys” que compete denunciar bem alto… sendo que na OM a “comissão de vencimentos” proposta é o próprio Conselho de Supervisão. Como se adivinha, “com toda a independência e sem conflito de interesses”!… Até hoje, e como é público, os cargos remunerados nas Ordens que nos tutelam são excecionais, são inteiramente suportados pelas quotas dos inscritos nas Ordens, não custam um cêntimo ao Estado, e na prática limitam-se ao Bastonário, sendo que a atividade deste é tão intensa que, na prática, exige “dedicação exclusiva” e honesto sustento.

Outro dos grandes objetivos da alteração, passa por “eliminar restrições de acesso às profissões”. Ora, nas profissões médica e de medicina dentária não existem restrições excessivas no acesso às profissões, a não ser as impostas pela A3ES, agência pública de acreditação do ensino superior, bastando dizer que as faculdades privadas, pagas a peso de ouro, estão a estabelecer-se progressivamente na primeira e já há muitos anos que abundam na segunda com os conhecidos efeitos de superprodução, desemprego, e emigração de médicos dentistas. Os números não enganam, cerca de 20% dos médicos dentistas, ou emigraram ou desistiram da profissão, e neste momento mais de 2000 jovens médicos portugueses estão dispersos pela Europa à procura de melhores condições de vida que não encontram em Portugal. Já alguém pensou seriamente no que isto é de prejuízo e de desperdício de recursos humanos para Portugal

E sim, de nada têm adiantado os fundamentados e preocupados pareceres negativos das Ordens profissionais pois as faculdades privadas avançam imparáveis para o negócio do ensino cujo efeito mais visível tem sido a proletarização dos profissionais e a queda da qualidade do mesmo. É a lei da livre concorrência a sobrepor-se aos interesses da coletividade, como facilmente se demonstra.

Só para comparar, a Ordem dos Médicos Francesa, em 2017, também por pressão da União Europeia, reviu os Estatutos. O Conselho Nacional foi assim “obrigado” a ter dois não médicos, num total de 58 membros (56 médicos). Esses 2 “não médicos” são um professor da faculdade de medicina e um técnico nomeado pelo tribunal de contas.

Em Portugal, a proposta do Governo para o Conselho de Supervisão da Ordem, fala em 40% de médicos inscritos na Ordem e 40% de professores das Faculdades de Medicina não inscritos na Ordem (que obviamente não serão médicos, pois para exercer Medicina é preciso estar inscrito na Ordem), além de 20% de não médicos que serão eleitos pelos restantes 80%. Ou seja, o Órgão superior da Ordem dos Médicos portuguesa passaria a ter 60% de não médicos a dirigi-la! Descubram as diferenças…

Para cumulo a Lei Quadro das Ordens Profissionais exige a entrada de elementos externos, não médicos, nos órgãos disciplinares das Ordens. E assim, veremos dedicados capitães de fragata, esforçados engenheiros de minas e competentes doutorados em física quântica a opinar e ter voto sobre questões técnico-científicas com implicações médico-legais do foro estritamente médico ou médico-dentário, para as quais não têm qualquer preparação. Alguém acredita nisto? Alguém ajuda o nosso Governo a cair na realidade?

Ainda voltando à eliminação de restrições de acesso às profissões e analisando o caso especial da Medicina Dentária, verifica-se que a proposta do Governo visa desregular a profissão e abri-la à incompetência.

Para sermos mais específicos, no Artigo 8.º do capitulo I – Definições e competências dos estatutos da OMD (EOMD), podemos ler – O disposto no número anterior  (onde são descritos os atos que os médicos dentistas podem realizar, aliás designados como competências e não atos próprios), “não prejudica o exercício dos atos (aqui já descrito como ato)  nele previstos por pessoas não inscritas na OMD, desde que legalmente autorizadas. “ – grande confusão!

Ao que foi recomendado pela OMD:

“Ora, com a exceção dos médicos estomatologistas ou profissionais médicos dentistas estabelecidos noutros Estados Membros, ao abrigo de uma deslocação ocasional e temporária, nos termos previstos no artigo 36º da Lei 2/2013, Lei n.º 9/2009 e Diretiva  2005/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Setembro de 2005, relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais, não se alcança como podem ser autorizadas a praticar tais atos — alegadamente da “competência dos médicos dentistas” — outras pessoas não inscritas na OMD, tendo em conta que todos os atos próprios elencados são praticados, no âmbito do conteúdo funcional da medicina dentária e pressupõem um título de formação superior adequado para o efeito. Tal constitui uma violação das atribuições legalmente atribuídas à OMD, porquanto se permite que, por via legal, venha a ser autorizada a prática de atos da medicina dentária por profissionais não inscritos na OMD, cuja principal atribuição é a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços e regular o acesso à profissão de médico dentista. Para além disso, ao admitir a prática de atos por outras pessoas não inscritas na OMD não se está a garantir o nível mínimo de qualidade dos serviços aos cidadãos, nomeadamente a “importância de assegurar um elevado nível de proteção da saúde humana.”, conforme alerta o relatório da Autoridade da Concorrência, emitido em abril do corrente ano, no âmbito da pronúncia prevista ao abrigo da Lei n.º 12/2023 de 28 de março.”

Acresce, ainda, que na proposta de alteração ao Estatuto da Ordem dos Médicos, e como sabemos, por insistente e irredutível insistência da OM,  não está prevista esta possibilidade, pelo que a inclusão deste parágrafo no EOMD“reflete um tratamento desigual de duas profissões regulamentadas, o que não se pode admitir. Nessa medida, propõe-se eliminar a redação do n.º 4, porquanto a mesma não serve os melhores interesses do Estado e dos cidadãos.”

Mais acrescentaram:

“A manter-se a possibilidade de outros profissionais exercerem atos próprios da profissão de médico dentista — o que, por mera hipótese académica se admite –, então que sejam elencados os profissionais que podem, na presente data, exercer parcial ou totalmente, as mesmas competências/atos dos médicos dentistas, tal como acontece noutras ordens profissionais, como é o caso da Ordem dos Advogados, limitando-se tal possibilidade a médicos inscritos na Ordem dos Médicos e aos Odontologistas, nos termos previstos na Lei n.º 40/2003 de 22 de agosto, na sua redação atual, tudo tendo em vista a salvaguarda do superior interesse do doente. Caso assim não se entenda, então que a autorização para a prática de tais atos, seja precedida de parecer vinculativo por parte da OMD. Em todos os casos, a autorização legal para este efeito deverá apenas ser a que seja concedida expressamente após a entrada em vigor dessa lei.” Proposta que, até agora, não foi aceite!

Só por aqui, pode-se concluir como esta alteração, não só põe em risco o trabalho prestado, que é “garantido” pela academia e homologado pelas nossas Ordens, assim como é um “passar por cima”  de leis já estabelecidas pela Autoridade da Concorrência e do Parlamento Europeu.

Concluimos assim que as diretrizes vêm da União Europeia é certo, mas a adequação destas às diferentes realidades  “espelhadas” nas Ordens, é da responsabilidade do Governo, está muito mal formulada e só vêm trazer caos!

Obviamente, cada Ordem tem as suas especificidades e problemas, que deveriam  ser avaliados com tempo, seriedade e realidade, por pessoas com competência…

Há tantos problemas por resolver mas acompanhado deste alheamento profundo da realidade, mais uma vez o Estado, mas na prática o Governo,  só demonstra que quer controlar algo já há muito estruturado, e que, na prática, desconhece profundamente.

Lembremo-nos sempre de que, o conceito de Ordem Profissional tem a sua origem nas corporações de artífices da Idade Média e em revoluções liberais com o intuito de alterar e organizar as profissões livres e dotadas de um saber técnico-científico estruturante e que a sociedade não pode deixar degradar!… Advogados, arquitetos, engenheiros, médicos… pela sua importância fundamental para a sociedade, possuem  saberes que não podem estar apenas sujeitos às leis da concorrência e do mercado livre, sob pena de os deixarmos degradar até patamares em que não está defendido o superior interesse e até a saúde do ser humano.

As Ordens profissionais, representam profissões especificamente reguladas que exigem um elevado grau de preparação educacional e de especialização, e cultivam um ethos associativo, que se rege por um conjunto de valores e regras fundacionais.  Os seus associados têm legítimas aspirações de carreira e as suas profissões desenvolvem-se com prestígio e  grande expressão social, tendo uma importância vital na sociedade global.

As Ordens também constituem importantes, informados e legítimos grupos de pressão em relação ao poder político… estará aqui a origem do “grito” de preocupação do Governo? Se assim for, podemos considerar que vivemos numa “pseudo-democracia” pois parece que se identificam nas Ordens perigos que não são mais do que moinhos de vento..

Neste ponto essencial, é claro que defendemos os direitos inequívocos dos cidadãos, que parecem estar a ser postos de lado…

Esperemos que as Ordens e a sociedade civil em geral ainda possam ir a tempo de ajudar a mudar estas desastradas propostas de lei. Os Estatutos das Ordens estão em consulta pública até 27 de julho e depois serão discutidos na Assembleia da República. Continuaremos a contribuir!