Texto originalmente publicado pelo portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ.

O

negacionismo

Durante décadas imperou no espaço público uma perspectiva relativista perante as alterações climáticas. Em não raros casos, nos debates eram colocados frente a frente duas pessoas com posições opostas: uma defendia a ciência climática, ou seja, afirmava que é inequívoco que a temperatura média da Terra está a aumentar por causa da subida da concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera em resultado da actividade humana; no outro canto do ringue, um negacionista exibindo títulos académicos,  por vezes mesmo com uma gravata, apresentava pomposamente, munido de gráficos, a perspectiva contrária sem se rir, ou seja, o planeta não estava a aquecer, e, mesmo que estivesse, a culpa não era nossa, pelo que não havia nada a fazer, estava tudo bem. Em nome de uma visão algo patológica do contraditório, a verdade e a mentira eram colocadas em pé de igualdade.

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Acontece que há décadas que só há uma corrente científica acerca das alterações climáticas. O efeito de estufa tem vindo a ser estudado desde o século XIX (sim, século XIX), começando com o cientista francês Joseph Fourier (1768-1830), que fez as contas às quantidades de radiação recebida e emitida pela Terra e viu que elas não batiam certo: a temperatura média do nosso planeta deveria ser de 18 ºC negativos e não cerca de 14 ºC positivos. O físico irlandês John Tyndall (1820-1893) construiu em 1859 um modelo da atmosfera em miniatura, tendo-lhe de início parecido razoável incluir nele apenas os dois gases que perfazem 99% da composição da atmosfera: azoto (78%) e oxigénio (21%). Mas depois verificou que, para conseguir reter a radiação infravermelha (calor), teria de acrescentar alguns gases presentes em quantidades bem menores: vapor de água, metano e dióxido de carbono, três gases com efeito de estufa. O químico sueco Svante Arrhenius (1859-1927) criou mais tarde o primeiro modelo quantitativo para a relação entre a concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera e o clima. Ele previu uma subida de 5 °C a 6 °C na temperatura média da Terra se a concentração de dióxido de carbono na atmosfera duplicasse, o que não anda muito longe das estimativas contemporâneas. Não lhe pareceu mal que a temperatura subisse um pouco: na altura Arrhenius estava mais preocupado com o risco de uma nova idade do gelo, caso a concentração de dióxido de carbono baixasse.

Em 1958 o climatologista Charles Keeling começou a medir de forma rigorosa as concentrações de CO2 atmosférico no Observatório Mauna Loa, no Havaí. Em 1959 havia na atmosfera 316 moléculas de CO2 por cada milhão moléculas de ar seco (316 ppm, partes por milhão). Em Outubro de 2021 já eram 414 ppm. Também temos hoje registos baseados em medições efectuadas por instituições diferentes que coincidem quase perfeitamente no aumento de cerca de 1 ºC de temperatura em relação ao período pré-industrial. E, para além da correlação entre os dois fenómenos, conhecemos também os mecanismos envolvidos, quer no aumento da concentração de CO2 atmosférico (queima de combustíveis fósseis), quer na relação entre a concentração de CO2 e a temperatura média da Terra (os gases com efeito de estufa retêm a radiação infravermelha emitida pela superfície terrestre).

Desde 1990 que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla inglesa), um órgão das Nações Unidas em que participam 193 países incluindo Portugal, tem publicado relatórios acerca da ciência das alterações climáticas. Estes relatórios resultam de uma colaboração voluntária de cientistas de todo o mundo, que têm em conta toda a produção científica sobre alterações climáticas. O primeiro foi publicado em 1990 e o sexto tem data prevista de publicação em 2022. Os sucessivos relatórios do IPCC têm vindo a indicar, cada vez com mais clareza, a realidade do aquecimento global, a inquestionável responsabilidade humana, e a fazer a avaliação das suas consequências, apontando caminhos para inverter a situação.

Em 2004 a filósofa e historiadora de ciência norte-americana Naomi Oreskes publicou um trabalho pioneiro de quantificação do consenso científico acerca das alterações climáticas[1]. Ela analisou uma amostra de cerca de mil artigos científicos sobre questões climáticas publicados em revistas científicas e chegou à conclusão que nenhum deles discordava da afirmação «o clima da Terra está a ser afectado pelas actividades humanas». A quantificação desse consenso científico tem vindo a ser confirmada e actualizada em análises posteriores, estimando-se hoje nos 98%[2].

Há pelo menos 30 anos que o negacionismo das alterações climáticas é uma pura desonestidade intelectual. Há pelo menos 30 anos que não há qualquer controvérsia científica acerca das alterações climáticas. A controvérsia a que assistimos no plano social é falaciosa, porque o lado negacionista tinha (como tem hoje) uma mão cheia de nada. Um negacionista é muito diferente de um céptico. Um céptico não acredita numa determinada coisa para a qual não existem provas consistentes. Um negacionista recusa-se a acreditar nessa coisa, por muitas provas que haja em seu favor. O cepticismo científico é a racionalidade no lugar certo. O negacionismo é a entrega à irracionalidade. O negacionismo das alterações climáticas foi também alimentado por interesses das indústrias petrolíferas, que tomaram acções concretas que estão bem documentadas (por exemplo, através do American Enterprise Institute, uma entidade ligada à Exxon Mobil Oil) para espalharem a confusão no espaço público. Eu e o Carlos Fiolhais descrevemos essas manobras de diversão nos nossos livros Pipocas com Telemóvel e Outras Histórias de Falsa Ciência (Gradiva, 2012) e A Ciência e os Seus Inimigos (Gradiva, 2017).

Uma palavra de reconhecimento ao papel do actual papa, Francisco, que em 2015 publicou a encíclica Laudato Si (Louvado sejas), que é um documento baseado na melhor ciência de que dispomos (o papa tem uma formação secundária em química técnica e chegou a realizar profissionalmente análises químicas antes de entrar no seminário) no qual são nítidas as preocupações ecológicas, e não apenas no que respeita às alterações climáticas.

O alarmismo

Ao negacionismo seguiu-se outra forma de desonestidade intelectual: o alarmismo. O activista e co-fundador do grupo Extinction Rebellion Roger Hallam afirmou, no programa HardTalk da BBC, em Agosto de 2019, a propósito das consequências das alterações climáticas: “As pessoas [estão zangadas e a infringir as leis porque] não querem que os seus filhos morram”,

Estamos a falar de fome em massa nos próximos dez anos, o colapso social e possivelmente a extinção da raça humana. Não podia ser pior” e “Estou a falar do massacre, morte e fome de seis mil milhões de pessoas este século – é isso que a ciência prevê”.

Só que não acontecerá nada disso. Não há nada no horizonte que faça prever uma redução da população humana com qualquer relação, ainda que vaga, com essa previsão catastrofista. Segundo as previsões demográficas das Nações Unidas em 2100 a população humana atingirá  cerca de dez mil milhões. Na verdade, também há um catastrofismo demográfico oposto, que é a ideia que a população humana vai continuar a crescer indefinidamente. Isso também não é verdade. Prevê-se que a população humana atinja um máximo algures antes do final do século e que depois comece a descer. Esse pico, bastante previsível, está relacionado com a melhoria das condições de vida. Sempre que as populações saem da pobreza extrema, a mortalidade infantil baixa: em 1950 morriam, em todo o mundo, 210 crianças antes dos cinco anos por cada mil nascimentos; actualmente são cerca de 38 (em Portugal, esse número é de 3) e prevê-se em que em 2100 sejam menos de 20. Com a libertação da pobreza extrema, a fertilidade também baixa: era de cinco filhos por mulher (em média) em 1950, o dobro do valor actual, prevendo-se que em 2100 esteja um pouco abaixo de dois (em Portugal é hoje 1,3). Ou seja, à medida que mais pessoas no mundo saem da pobreza, optam por ter menos filhos e por investir mais na sua educação. Por exemplo, actualmente perto de 65% das raparigas em países pobres completam o ensino primário. Na verdade, todos os países do mundo melhoraram espectacularmente nos últimos dois séculos  a esperança de vida e o rendimento per capita. Durante os séculos de industrialização ficámos todos mais saudáveis e mais ricos. Por exemplo, na Suécia, o país de Greta Thunberg, em 1803 as pessoas viviam em média até aos 40 anos com o equivalente actual a 1510 dólares por ano. Em 2019 a esperança média de vida na Suécia era cerca de 83 anos e o rendimento per-capita anual de cerca de 53 000 euros. Mas as melhorias não foram só nos países ricos. Em Angola a esperança média de vida era de 27 anos em 1799 e o rendimento médio anual era o equivalente a 691 euros actuais. Em 2019 a esperança de vida já era de 65 anos e o rendimento per capita de 6670 euros. Uma situação ainda má, mas ainda assim a melhorar. Portugal tinha em 1799 uma esperança média de vida de 36 anos e um rendimento per capita anual equivalente a 1689 euros. Em 2019 era quase 83 anos e 35 000 euros (estamos no primeiro quartil de riqueza entre todos os países, sendo, por assim dizer, “os mais pobres dos ricos”).

A produtividade agrícola por área cultivada aumentou extraordinariamente ao longo do século XX e continua a aumentar. Por exemplo, em 1961 cada hectare produzia em Portugal 0,7 toneladas de trigo por ano, em 2014 já produzia 2,1 toneladas (um aumento de 217%). No resto do mundo e em várias culturas está a acontecer o mesmo: produzimos mais usando menos solo, graças a novas tecnologias agrícolas, como os fertilizantes sintéticos. Obviamente que a perda da biodiversidade é um problema, mas até nisso a agricultura intensiva pode ajudar, ao conter a expansão da área agrícola: a área cultivada tem vindo a aumentar, mas não tanto como a produção agrícola. Actualmente 15% de toda a superfície terrestre tem o estatuto de área protegida, o maior valor de sempre e com tendência a subir. E há causas que contribuem para a perda da biodiversidade mais do que as alterações climáticas, como a sobrepesca ou a desflorestação.

Não se perspectiva, portanto, fome em massa por causa das alterações climáticas. E não se perspectiva um colapso social, a menos que a Extinction Rebellion o consiga criar.

Desde 1990 a Europa baixou em quase 30% as suas emissões de CO2. A América do Norte começou a reduzi-las em 2008, tendo desde então baixado de valor semelhante. Portugal reduziu 32% em 2019 as suas emissões relativamente a 2004 (em 2020 a redução foi ainda superior, mas sendo um ano de confinamentos esse valor pode não ser significativo). Claro que, no mundo, as emissões continuam a aumentar: desde 1990 que subiram 61%. Isto porque os povos de países pobres aspiram legitimamente a níveis de bem-estar comparáveis aos nossos.

A Ásia é responsável por 53% das emissões globais (27% da China), a América do Norte por 18% (15% dos EUA), a Europa por 17%, África por 3,7%, a América do Sul por 3,2% e a Oceania por 1,3%. Claro que a dimensão da população em cada uma das regiões é diferente e um indicador muito relevante são as emissões de CO2 per capita. O país com o valor mais elevado é o Qatar (37 toneladas por habitante em 2020) e o país com o valor mais baixo é a República Democrática do Congo (0,03 toneladas). Em Portugal esse valor é de 3,96 toneladas. Obviamente que a República Democrática do Congo, a Somália, a República Centro Africana, o Burundi e outros países com emissões per capita inferiores a 0,05 toneladas por ano precisarão de as aumentar. E isso não é mau, porque a menor vulnerabilidade aos impactos das alterações climáticas depende muito de infraestruturas que só existem nos países mais ricos: não são iguais as consequências de um tufão nos Estados Unidos ou no Haiti. E obviamente que os países ricos, responsáveis por quase todo o CO2 a mais na atmosfera, têm uma obrigação moral de ajudar os mais pobres a desenvolverem-se, tornando-se mais capazes de se adaptarem às mudanças no clima. Na verdade, os países mais ricos comprometeram-se com ajudas de 100 mil milhões de dólares anualmente, valor que nunca entregaram. Deveriam fazê-lo.

Um inquérito recente realizado a 10 000 jovens em dez países revelou que cerca de 60% dos jovens está preocupado ou muito preocupado com as alterações climáticas. Portugal é dos países ricos aquele que tem uma maior percentagem de jovens extremamente preocupados: 65%. Preocupado, eu também estou. Mas mais: 70% dos 10 000 jovens disseram que estavam tristes, 68% com medo, 63% ansiosos e 58% zangados. Também eu estaria, se acreditasse que a espécie humana está em risco de extinção ou que a possibilidade de fome generalizada é real. Sendo certo que os períodos de seca e a subida da temperatura poderão ter um impacto negativo, especialmente nalgumas regiões, não se perspectiva nenhum colapso na produção agrícola mundial. Mas os alarmistas das alterações climáticas querem-nos fazer crer que sim. E isso é tão desonesto como o negacionismo.

As alterações climáticas são um problema sério que temos de tratar com racionalidade e não com superficialidade. A emoção desempenha um papel nos nossos processos cognitivos, mas, neste caso, precisamos de respostas racionais, friamente avaliadas, e não de extremismos acéfalos dirigidos para problemas que não existem.

[1] Naomi Oreskes, “Beyond the Ivory Tower, The Scientific Consensus on Climate Change”, Science (2004): Vol. 306 n. 5702 p. 1686
[2] J. Cook et al. (2013). Quantifying the consensus on anthropogenic global warming in the scientific literature. Environmental Research Letters, 8(2), 24024. http://stacks.iop.org/1748-9326/8/i=2/a=024024