O Censo Nacional de Animais Errantes 2023 publicado pelo Instituto de Conservação Nacional das Florestas (ICNF), e realizado pelo departamento de biologia da Universidade de Aveiro, anunciou a existência de 830.541 gatos e 101.015 cães abandonados nas áreas humanizadas do território continental, com base em “estimativas calculadas por extrapolação com base nos modelos resultantes e que representam cerca de 39% da área total do território.”

Por sua vez, o mesmo ICNF, através do relatório anual de atividade dos centros de recolha oficial (CRO) de 2023, documenta o saldo negativo (tendência constante nos últimos anos), entre os animais recolhidos pelos CRO e os animais adotados. Em 2023, acumulamos aos milhares já existentes, perto de quinze mil animais errantes. E estes dados, não contemplam os animais recolhidos pelos abrigos das associações animais. Se há uma calamidade silenciosa no nosso país, é a dos animais sem detentores, ou vulgos animais errantes.

A inexistência de um plano nacional de gestão de animais de companhia assume cada vez mais características de bomba-relógio, que normalizamos na última década relativamente à detenção de animais de companhia, e que, na minha opinião, contribuem para este descontrolo?

1.Que os animais de companhia estão ali disponíveis para colmatar os nossos défices emocionaise psicológicos enquanto indivíduos, tenhamos ou não capacidade financeira, psicológica ou tempo para os deter
2.Que deter um animal de companhia pende mais para ser um direito do que um dever, libertando do escrutínio se temos condições para o deter
3.Que para incutir responsabilidade nos nossos filhos, oferecer-lhes um animal é um dos métodos ideais, delegando na detenção de um animal a nossa responsabilidade parental, fazendo do animal um presente e não um compromisso de todo o agregado familiar
4.Que posso decidir deter um animal de companhia e se depois não o quiser/puder ter, entrego a alguém ou a alguma instituição que tratará dele por mim, sem consequências;
5.Que o município onde vivo é responsável por tratar do meu animal de companhia caso eu não tenha possibilidades, mesmo que tenha tomada a decisão de o ter

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Poderia continuar a enumerar outros argumentos que hoje são habitualmente usados, para desresponsabilizar a detenção dos animais, existindo outros mais. Porém quero chamar a atenção para a necessidade de ações a curto, médio e longo prazo necessárias para implementar uma estratégia nacional de gestão de animais de companhia, salvaguardando o bem-estar destes animais, dos seus detentores e de toda a cadeia relacionada com estes.

O papel do animal de companhia na nossa vida é indiscutível, graças à evolução e adaptação, eles, cães e gatos, são elementos da nossa família, porém, não existem famílias para todos, para o potencial reprodutivo dos animais errantes.  Se voltarmos aos dados da Universidade de Aveiro de 2023, os mais de 830 mil gatos errantes, em 2024, sem controlo reprodutivo poderão acrescer mais de 300 mil gatos, a cada ano que passe, sem controlo reprodutivo, este número crescerá exponencialmente.

É consensual que haja uma estratégia de controlo reprodutivo, quer para animais errantes, quer para quem detém um cão ou gato. É necessária coragem por parte dos decisores políticos, e esta matéria deve extravasar mais do que a ideologia política partidária, deve ser um desígnio nacional. Diversas medidas que poderão ser aplicadas em diferentes horizontes temporais: em diferentes horizontes de aplicabilidade.

Medidas a curto prazo:

No caso dos animais errantes detidos em CRO ou abrigo animal, deverão ser compulsivamente alvos de cirurgia reprodutiva para controlo reprodutivo.

No caso dos detentores de animais de companhia, que queiram reproduzir o seu animal, terão de informar a entidade competente que serão criadores informais, identificando todos os animais nascidos dessa ninhada. Por outro lado, os detentores que não querem reproduzir os seus animais, beneficiarem de incentivo em sede de IRS nas despesas do seu animal, deduzindo pelo menos o IVA de 23%, que os serviços médico-veterinários são incompreensivelmente os únicos a ter pela sua profissão médica.

Proibição de venda online de animais em plataformas sem verificação validada pelo SIAC de número de identificação eletrónica. Há um sistemático uso de números falsos de identificação eletrónica, assim como o número de registo de criador, sem verificação por parte das plataformas de comércio online por falsos criadores.

A identificação eletrónica obrigatória de todos os animais de companhia para além dos cães e gatos, assim como fiscalização ativa por parte das forças da autoridade e uma moldura contraordenacional pesada para quem incumprir a obrigação de ter o seu animal com microchip.

Isenção do IVA para serviços médico-veterinários e rações para animais, ajudando as famílias carenciadas que detêm animais e ajudando futuras famílias que desejem ter um animal de companhia;

Medidas a médio prazo

Criação de procedimento judicial simples, específico e de carácter urgente para uma maior celeridade na decisão judicial relacionada com processos que envolvam animais, evitando a acumulação frequente de animais no CRO durante meses ou anos, não podendo ser elegíveis para a adoção por indefinição do tribunal.

Obrigatoriedade de informação do número de microchip da mãe de qualquer cão ou gato aquando do seu registo.

Revisão de critérios mínimos para o estatuto de criador, quer para criadores informais, quer para profissionais, quer ao nível de formação, quer ao nível de condições físicas para a criação responsável de animais de companhia.

Elaboração de critérios claros para a implementação de colónias Captura-Esterilização – Devolução (CED) de gatos, permitindo o bom uso desta ferramenta de gestão populacional errante felina

Medidas a longo prazo

Introdução de perguntas específicas sobre a detenção de animais, no exercício de CENSOS elaborado pelo INE, para o conhecimento aprofundado da detenção de animais de companhia.

Criação de numerus clausus e mapa de colónias felinas CED por município, onde a sua implementação tenha impacto mínimo na biodiversidade e na saúde pública.

Registo de eventos de risco relativos à conduta do detentor com o animal (como o abandono, negligência, maus-tratos, recusa de tratamento do animal sem justificação plausível) no SIAC, criando um histórico de detentor, como referência para futuras cedências ou adoções.

Poderia detalhar ainda outras medidas, mas se realmente queremos começar a inverter a tendência do abandono, precisamos de coragem política e de decisão para aplicarmos pelo menos metade das medidas acima enumeradas. Posso convictamente afirmar que os animais de companhia ditos errantes ficariam mais salvaguardados do erro humano, que na atualidade os infelizmente condena à longas clausuras nos CRO ou nos abrigos animais, ou a serem um dos mais de mil animais atropelados anualmente na via pública. E no final, não esquecer que tudo começa por se querer ter ou reproduzir um animal de companhia, tantas vezes baseados num impulso emocional.

A meu ver, eles merecem mais, merecem alguém que decide ter, poder cuidar, tratar, zelar e amar. Porque amar, sejam pessoas ou animais, só se faz positivamente com trabalho constante e dedicação, mesmo nos momentos mais difíceis. Se decidir ter um animal de companhia, não o faça por capricho, ou moda, ou porque é norma, faça-o com uma profunda seriedade de quem terá de cuidar normalmente mais de uma década por um animal que confia e conta consigo para todos os seus dias de vida.