No início do mês de novembro, o canal de Youtube do The Economist publicou um vídeo sobre o que acontece ao nosso cérebro à medida que envelhecemos. É um tema irresistível. O cérebro representou durante muito tempo um reduto quase impenetrável, o que justifica parte do nosso fascínio, mas nas últimas décadas o conhecimento científico acerca dele registou um enorme crescimento. O paradoxo gerado por esse conhecimento não o torna menos fascinante: é que quanto mais sabemos sobre o cérebro, o seu funcionamento e a sua ligação a outros órgãos, mais nos tornamos conscientes das nossas limitações. As decisões que julgamos resultado de livre-arbítrio são quase sempre condicionadas por exigências biológicas e somos muito mais dependentes dos nossos intestinos do que gostaríamos de admitir.

Em livro recentemente publicado, Matt Warren e Miriam Frankel oferecem 29 razões para nos mostrar que não pensamos tão claramente como julgamos. Não quer dizer que estejamos condenados às instruções da nossa microbiota intestinal e à produção dos neurotransmissores químicos, como a oxitocina ou a serotonina, ou que o algoritmo consiga exercer um poder ilimitado sobre a nossa mente. Mas temos de reconhecer a validade da imagem criada por Jonathan Haidt em A conquista da felicidade: a nossa mente é como um enorme elefante, correspondendo aos nossos processos inconscientes, intuitivos, emocionais e automáticos, que é conduzido por um pequeno cornaca, que representa o lado consciente e racional. O elefante é muito maior e poderoso, mas o condutor pode convencê-lo a ir na direção mais sensata e não a pretendida pelo grande animal.

Uma das consequências do conhecimento crescente sobre o cérebro tem sido a identificação de um conjunto de mitos que se foram instalando no senso comum: em Portugal, Alexandre Castro Caldas e Joana Rato têm tentado desmontar esses neuromitos, destacando a importância de introduzir o novo conhecimento científico nas áreas contíguas. E em Mente, Cérebro e Educação, Joana Rato especifica que essa necessidade é especialmente premente no que diz respeito à educação, uma vez que muitas ferramentas defendidas pelas ciências da educação carecem de fundamentação científica (sendo o mais relevante desses neuromitos o dos estilos de aprendizagem). A solução passaria pela transdisciplinaridade, permitindo introduzir nas políticas educativas informação científica sobre o desenvolvimento e funcionamento do cérebro das crianças e dos jovens.

O argumento de Joana Rato sobre políticas educativas que não se baseiam nas informações científicas sobre o cérebro pode, na verdade, ser generalizado para muitas áreas que estão cada vez mais sujeitas à politização. Pensemos na proposta discutida recentemente para diminuir a idade de voto para os 16 anos. Considerando o conhecimento científico de que dispomos, trata-se de uma proposta no mínimo estranha: o cérebro de um adolescente ainda não está completamente formado, e o córtex pré-frontal, responsável pelo raciocínio moral, pela noção de risco e pelo planeamento futuro, só termina a sua evolução entre os 20 e os 24 anos. Como dizem os autores de Deus Cérebro:

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“É por isso que não podemos exigir a um adolescente que tenha um comportamento responsável quando o seu “equipamento biológico” não lho permite. Além disso, uma das últimas ligações a ficar concluída é com a amígdala, que tem um papel importante na regulação das emoções. Não é, pois, de estranhar que um adolescente passe por uma montanha russa de emoções.”

A culpa não é deles: simplesmente o sistema ainda não está finalizado. É por isso que Matthew Walker recorda com graça a publicidade de uma companhia de seguros: “Porque motivo a maior parte dos adolescentes de 16 anos conduz como se lhes faltasse uma parte do cérebro? Porque falta.” E nos Estados Unidos, tendo-se constatado que os adolescentes demoram cada vez mais tempo a amadurecer, tem-se proposto a adoção de um “gap year” (ano de intervalo) antes de entrar na universidade, para que o cérebro tenha mais tempo para finalizar o seu processo de desenvolvimento.

A tendência cultural parece ser, no entanto, a de procurar insaciavelmente a emancipação biológica: a libertação deste corpo, desta biologia e, em consequência, dos dados que a biologia e a ética evolutiva nos fornecem. E isso tem ocorrido de duas formas. Uma delas resulta da tentativa de usar a ciência para promover essa libertação, como é defendido pelos autores e cientistas do transumanismo. Queremos a libertação deste corpo, nem que seja para transitarmos para cookies de memória em que viveremos para sempre mesmo que isso signifique não viver verdadeiramente.

A segunda forma reside nos movimentos políticos que afastam a informação científica por ela constituir um obstáculo às teorias da identidade que a entendem como resultado de mera decisão individual. Regressemos ao vídeo do The Economist: lá encontramos o desenvolvimento do cérebro desde a barriga da mãe até ao momento da morte. Pelo caminho, alguns de nós sentem no cérebro o período de menopausa: ou, como diz o vídeo, “those who go through menopause”, o que em português traduziríamos por “aqueles que passam pela menopausa”. Quer dizer: na nossa língua, esta tradução carece de inclusividade, pelo que deveríamos optar por algo como: “aquel@s que passam por menopausa”.

Aquel@s que passam por menopausa? Querem dizer: as mulheres? Mas isto não era um vídeo de divulgação científica? É impossível não nos recordarmos de Margaret Atwood: “Por que razão já não podemos dizer “mulher”?”; ou J.K.Rowling: “‘Pessoas que menstruam?’ Tenho a certeza de que havia uma palavra para essas pessoas. Alguém me ajude. Muteres? Mimeres? Moderes?”

Já sabemos a justificação para estas novas regras linguísticas: devemos prescindir de certas palavras e usar novas formulações para sermos mais inclusivos para com pessoas que não se identificam com o sexo com que nasceram ou identificam-se com a nova categoria vazia de não-binário. Mas este tipo de inclusão tem um preço: como Helen Joyce defende, se apagamos a categoria de mulher deixamos de poder salvaguardar a posição, os interesses e os direitos das mulheres.

Lentamente, estas reações deixaram de estar reservadas ao domínio académico ou das escritoras e intelectuais mais destacadas. Porque tal como estas figuras afirmaram desde o início, as injustiças não tardaram. E tendo começado a chegar à vida real, as mulheres comuns começam a reagir, sobretudo nos países onde a agenda da autoafirmação de género está mais avançada, como no Reino Unido, onde se começa a discutir a hipótese de misgendering [confundir o género de alguém] se tornar um crime. (E não se esqueçam também de evitar o deadnaming, i.e., usar o nome que a pessoa quis abandonar quando assumiu a nova identidade.)

Num país tradicionalmente ligado à luta pelos direitos das mulheres, Posie Parker continua a tentar legalizar o seu partido, Party of Women; jogadoras no campeonato feminino recusaram jogar com jogadores trans que põem em causa a sua segurança (física); e Alexandra Cunha decidiu não participar em campeonatos com trans e não binários por considerar que as condições de igualdade não estão asseguradas (a jogadora explica a sua decisão neste Contra-Corrente).

A emancipação biológica pode ser uma ideia filosófica sedutora. Na vida real, ainda vivemos em corpos determinados biologicamente e o máximo que podemos fazer é tentar dominar o elefante-que-tudo-quer e convencê-lo de que viver em sociedade requer bom-senso, realismo e respeito para com as outras pessoas e as instituições.

PS: Em Portugal, a sociedade civil tem tentado organizar-se, nomeadamente através de Petições Públicas. Destaco a seguinte, que já foi entregue na Assembleia da República, embora as atuais condições políticas não permitam saber quando será discutida: https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT116048.