Ocorreram a 14 de Fevereiro, as eleições para o parlamento da Catalunha. E o que se pode dizer do resultado destas eleições é que de certa forma perderam todos – incluindo aqueles que aparentemente ganharam.

O quadro político que sai destas eleições para a Generalitat da Catalunha pode reduzir-se a duas palavras: frustração e impasse.

Uma frustração que decorre naturalmente da pandemia, mas também do cansaço dos catalães com o processo político: a ressaca da malograda tentativa de secessão de 2017 tem-se traduzido na deterioração da situação polícia catalã (e espanhola) e no enredar de um novelo cada vez mais intrincado e emaranhado.

Os catalães estão simplesmente exaustos: votaram três vezes em eleições regionais em menos de seis anos, viveram com exaltação e euforia seguida de depressão e de desilusão geral um fracassado referendo para a independência da sua nação, viram um dos seus governos dissolvido pelo governo central de Madrid, viram o seu governo seguinte igualmente dissolvido por uma sentença judicial madrilena. Têm um antigo presidente de governo foragido à justiça espanhola e exilado na Bélgica. E têm outro antigo presidente de governo inabilitado pelo poder judicial desde Setembro passado. Os catalães assistiram a dissoluções e criações de partidos políticos no espaço político nacionalista. Viram alianças e cisões. Zangas e reconciliações. E juras de acordos e traições. E um campo político-partidário cada vez mais fragmentado.

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Assim, de certa forma, os catalães viraram as costas à política depois de anos de frenesim. A taxa de participação nestas eleições baixou mais de 25% comparada com a última eleição de 2017: apenas 53% de votantes agora, contra 79,04% em 2017.

Em quatro anos, os catalães passaram de um recorde de mobilização a um recorde de abstenção.

A situação política na Catalunha é igualmente um impasse: Carles Puigdemont é hoje o líder do independentismo não-socialista catalão mas está fugido na Bélgica. E o seu lugar-tenente, o último presidente regional, o independentista Quim Torra, está legalmente impedido de ser eleito para funções públicas (foi judicialmente destituído da chefia do governo e condenado com inelegibilidade de um ano e meio por se ter recusado a retirar uma faixa com conteúdo separatista da fachada da sede do governo regional em Barcelona). Mas a liderança oficiosa de Carles Puigdemont do seu campo político assenta num monte de destroços, de traições, de destruição do seu antigo partido, de infindáveis recriminações. É o que resta do esfrangalhado espólio da antiga e gloriosa Convergència i Unió (CiU) que governou a Catalunha durante os anos dourados e prósperos das primeiras décadas da autonomia catalã. É, ao fim e ao cabo, uma liderança sob cerco, inconsequente e incapaz de governar a mais rica região espanhola.

É certo que o conjunto dos partidos independentistas da Catalunha reforçaram nas eleições de hoje a maioria parlamentar que já detinham (os partidos que defendem a independência da Catalunha passaram de um bloco de 70 para 74 deputados); e pela primeira vez numas eleições na Catalunha os partidos que defendem a independência catalã obtiveram também mais votos nas urnas do que a soma dos votos obtidos por todos os partidos espanholistas.

Mas esta maioria é uma maioria largamente inoperativa: a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC – fundada em 1931, histórica formação independentista catalã e socialista, herdeira da velha tradição republicana e anti-franquista catalã) suplantou pela primeira vez os seus parceiros liberais-burgueses do campo nacionalista catalão, tradicionalmente mais liberal em termos económicos (a ERC obteve 33 deputados e 21,3% dos votos e o Junts per Catalunya, de Carles Puigdemont, obteve 32 deputados e 20,04% dos votos). Mas com apenas um deputado de diferença entre cada um deles é difícil a algum manter um ascendente claro no futuro governo regional – especialmente quando os seus líderes factuais ou estão fugidos, ou estão presos, ou estão inabilitados.

Acresce a isto, o facto de o próximo governo nacionalista catalão estar dependente do apoio do sector mais populista e agitado da CUP (extrema-esquerda independentista de carácter basista, agora reforçada com o dobro dos deputados, tendo passado de cinco para nove).

O impasse político catalão não é, contudo, apenas o resultado destas eleições: radica mesmo num problema de fundo que se coloca aos nacionalistas catalães: como conseguir separar pacificamente a mais rica região espanhola de Espanha? Como conseguir levar o Estado espanhol a abdicar voluntariamente  da sua unidade de 550 anos e, quiçá, da sua própria existência? Como continuar a integrar a União Europeia e manter o Euro, logrando separar-se de um Estado-membro da UE e fundador da moeda única? E no caso remoto e eventual de sucesso independentista, como manter a Catalunha fazendo parte do espaço geopolítico ocidental sem cair em aventuras terceiro-mundistas que arruínem o seu actual estatuto de riqueza e prosperidade?

O problema de fundo dos nacionalistas catalães é mesmo este: não têm um plano óbvio e exequível que sirva os seus objectivos declarados.

Mas o impasse político catalão é igualmente um impasse político espanhol.

A vitória pírrica do PSOE na Catalunha não lhe serve de nada em Barcelona (na actual paisagem política catalã, cada vez mais fragmentada, o Partido Socialista foi o mais votado, com 23,04 % dos votos, tendo obtido os mesmos 33 deputados que a ERC, mas tendo conseguido obter mais 49 mil votos que a ERC), pois não consegue formar maioria parlamentar no parlamento da Catalunha.

No entanto esta é uma “vitória” à medida do oportunismo e da falta de escrúpulos políticos de Pedro Sanchez: a TVE e os media oficialistas da esquerda espanhola começaram de imediato a vender como uma grande vitória do primeiro-ministro espanhol este resultado eleitoral frustre. Que Pedro Sanchez tenha desvalorizado o combate à pandemia, tendo substituído o seu ministro da Saúde (o catalão Salvador Illa) para o enviar em cima da hora para disputar umas eleições catalãs – onde dificilmente ganharia a chefia do governo regional – diz tudo sobre o seu calculismo eleitoral: quando o seu governo deveria estar apenas empenhado no combate à pandemia, o seu ministro da Saúde é despachado de Madrid para ser cabeça de cartaz de umas eleições regionais em Barcelona. Em vez de contar infectados e vacinas e camas de hospital no país, o importante foi contar votos em Barcelona para manter o seu poder.

O interesse na sobrevivência de um governo que depende de jogos de percepção e de cumplicidades parlamentares cruzadas em Madrid impôs-se a considerações mais altruístas de boa governação. Por esse ponto de vista, o primeiro-ministro espanhol ganhou. Ganhou pelo menos mais uns meses, ou mesmo uns anos, no cargo. De resto, os seus parceiros do Podemos aguentaram os mesmos 6,87 % e os mesmos oito deputados que lhes irão servir para fazer o mesmo: muito barulho para continuarem a ter alguma coisa em Madrid e para continuarem a não ter nada em Barcelona.

Mas é a direita democrática espanhola que tem mais razões para reflectir.

Os liberais do Ciudadanos (Cs) obtiveram um colapso monumental nestas eleições. Passaram de força política mais votada e de líderes da oposição em Barcelona a partido marginal (de 36 para seis deputados). Isto prova duas coisas: que quando a estratégia é berrar bem alto e insistir no histrionismo anti-catalão haverá sempre alguém ao lado direito a berrar ainda mais alto e a ser ainda mais radical anti-autonomista. Inés Arrimadas, que era a grande Pasionaria do anti-separatismo, vê-se agora suplantada pelo VOX, que propõe, nada mais, nada menos, do que o fim do actual arranjo constitucional das autonomias regionais e o regresso ao velho unitarismo espanhol de feição castelhana.

E a outra coisa que este resultado do Cs comprova, é que muito deslumbramento, muita bazófia e muita imprensa laudatória durante uns tempos nunca dão bom resultado a prazo: em política, as modas são efémeras. Mas os valores são perenes. Albert Rivera e Inés Arrimadas eram os meninos bonitos da política espanhola: jovens, fisicamente atraentes, discurso solto e fácil. Mas tinham em excesso de ambição o que lhes faltava em estratégia e disciplina. E tanto se deslumbraram consigo mesmos que se perderam na vertigem do seu próprio sucesso.

O resultado prático destes anos de grande projecto do liberalismo geracional e pós-moderno espanhol do Cs? Resposta: a esquerda radical de mãos dadas com o PSOE no poder em Madrid; a esquerda radical independentista no poder em Barcelona; e a liderança do pós-franquismo do VOX na oposição em quase todo o lado.

Lindo resultado!

Quanto ao PP, a análise é simples: este é o pior resultado da sua história em eleições na Catalunha (3,85 % e três deputados). Mais uma vez: quando em política a única estratégia é berrar bem alto haverá sempre alguém ao lado direito a berrar ainda mais alto.

Assim, quem agora lidera a direita espanholista em Barcelona é o VOX. Há quatro anos, este partido nem sequer existia na Catalunha. Agora é o segundo partido espanholista mais votado (7,6% e 11 deputados) e é o líder da oposição de direita espanhola na Generalitat da Catalunha.

O seu líder regional, Ignacio Garriga, é um jovem médico dentista de 34 anos, casado e com quatro filhos. E desafia todas as convenções políticas identitárias: é negro, é filho de uma mulher da Guiné-Equatorial (antiga colónia africana espanhola) que foi viver para Barcelona, ainda miúda, com os seus sete irmãos. O pai provém de uma família flamenga com tradição de militância nacionalista na Flandres. E foi educado em catalão. Antigo militante juvenil do PP espanhol, onde se filiou aos 18 anos, saiu do PP há dez anos, desiludido com a evolução liberal do PP em matérias de costumes: contra a aceitação do PP do casamento gay e contra o conformismo do PP perante a despenalização do aborto. Mas saiu do PP, sobretudo frustrado com a “passividade” do PP perante a defesa da “unidade da nação espanhola” e com a política “facilitadora” da imigração.

Que a oposição espanholista (oposição tout court, não só de direita, uma vez que as esquerdas do PSOE/Podemos não irão fazer grande oposição em Barcelona visto precisarem em troca do apoio ou da abstenção nacionalista para manterem o seu governo em Madrid) venha agora a ser liderada por um jovem negro de 34 anos, tendo o catalão como língua materna, filho de uma equatoriana-guineense e de um descendente de belgas flamengos, será certamente um quebra-cabeças.

Um quebra-cabeças para as cabeças demasiado esquemáticas das elites intelectuais europeias.