Segundo o nosso Governo, a Administração Pública está finalmente a passar por uma transformação profunda. A primeira fase da reforma foi aprovada em junho pelo Conselho de Ministros, e constitui a primeira etapa de um plano estrutural mais amplo que visa tornar o Estado mais eficiente e racional na administração dos recursos públicos, com poupança anual de 23 milhões de euros. Mas será que esta reforma vai ser realmente estrutural e estratégica em relação à gestão de recursos humanos no Estado?
Muitas vezes, a justificação que se toma por garantida ao mau serviço das instituições públicas são os salários baixos e a degradação continuada das condições de trabalho. De facto, todos sabemos que os salários são efetivamente baixos face ao nível de vida atual e que muitas carreiras estiveram congeladas durante anos, levando à inércia na evolução profissional em funções públicas, com consequente efeito na sua motivação e produtividade dos trabalhadores. No entanto, não esqueçamos que, na sua maioria (excluindo sectores como a saúde, educação, segurança e justiça), estamos a falar do grupo profissional com a maior permanência nas carreiras e menor carga horária do mercado de trabalho nacional. Aumentar os salários irá aumentar a produtividade? Provavelmente, mas os problemas presentes no emprego público são muito mais complexos que isso e, para ser feito este gasto, irremediavelmente teriam de haver muitos cortes.
Num recente artigo da revista Sábado, é contada a história de Bárbara Coutinho, diretora do MUDE – Museu do Design, museu em Lisboa, que reabriu julho deste ano após estar 8 anos fechado em obras de remodelação. O texto refere que a mesma está no cargo há 15 anos sem concurso, através de avenças por ajuste direto de €3.850/mês. E é por este, e outros casos, que eu sou tão cética em relação ao sistema de emprego na Função Pública. Não querendo desvalorizar a importância e competência dos empregados do Estado, é impossível qualquer sistema funcionar bem quando não são garantidas as bases para uma gestão eficiente de recursos, como a concorrência, a transparência e a meritocracia. E vamos ser sinceros, o que é a função pública que não um museu repleto de estátuas como esta? Estaremos dispostos a discutir a célebre escultura do “elefante na sala”?
Tudo começa com concursos de acesso às funções públicas (quando eles existem), na sua maioria muito burocráticos e pouco transparentes, alguns deles com maior preponderância no conhecimento das instituições públicas que em habilitações académicas e profissionais para o cargo, denotando à partida um processo de seleção duvidoso. Isto quando o processo não é feito pelo controverso “regime de mobilidade” que possibilita realocar um profissional da função pública de uma área para outra, processo que se torna especialmente crítico em cargos mais técnicos ou de direção e liderança que deveriam ser abertos à população em geral que tenham conhecimentos e experiência nas áreas específicas.
Isto porque, como todos sabem, o emprego na função pública quase garante uma “duração vitalícia”, coisa rara no mercado do trabalho atual, já que a maioria dos trabalhadores do Estado está protegido dos despedimentos por lei. E apesar da estabilidade ser uma coisa boa a nível profissional, leva obrigatoriamente uma estagnação do trabalhador ao nível da motivação e concretização, para não falar que a falta de concorrência, sinónimo da falta de oportunidade para a integração de novos profissionais. As consequências deste sistema são visíveis, com uma massa laboral envelhecida, sendo que em 2023, 65,9% dos trabalhadores das administrações públicas tinham mais de 45 anos de idade (dados do boletim estatístico do emprego público 2011-2023 da DGAEP Direção-Geral da Administração e do Emprego Público).
Depois existe o afamado Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho na Administração Pública (SIADAP), instrumento importante para a meritocracia, cujo objetivo deveria ser a gestão eficiente dos serviços públicos com base no desempenho dos profissionais, mas que acaba por não ser aplicado adequadamente, com pouca transparência, não refletindo na prática os resultados das avaliações. Estes resultados, que poderiam ser utilizados eficazmente para a criação de um plano de treino e competências a cada profissional de forma a o dotar com as ferramentas necessárias para acompanhar a evolução do seu trabalho, acaba muitas vezes por ser o seu oposto, objeto de falta de equidade que até pode levar à degradação das carreiras.
E não é preciso ser um profissional da investigação criminal para perceber que este ambiente de controlo, privilégio, opacidade e burocracia é propicio à incompetência e, em casos mais graves, à corrupção. Não é por acaso que nos chegam constantemente aos ouvidos notícias de casos de desvios de dinheiro e bens, chefias que são chefes deles próprios, contratos de ajuste direto com empresas fantasma, etc. Se o intuito é credibilizar a função pública e torná-la atrativa aos profissionais, então a reforma proposta deveria passar mesmo por uma limpeza profunda à casa, com um plano de gestão da mudança para reformulação de toda a estrutura, processos e sistemas. Será impossível pensar em melhorar a eficiência dos recursos das instituições do Estado sem erradicar de vez com todos os “monos” falsificados que estão a entupir a galeria.