A Constituição da República Portuguesa desde 1982, e após sete revisões, continua a manter uma distinção vincada entre o que é Segurança Interna e Defesa Nacional, reservando para a primeira a intervenção das Forças e serviços de Segurança e para a segunda as Forças Armadas, permitindo apenas a intervenção destas na Segurança Interna em estados de excepção, como o estado de emergência e o estado de sítio. A última revisão aconteceu em 2005, ou seja, já lá vão quase 2 décadas nas quais o Mundo mudou quanto ao tipo e à gravidade de ameaças que hoje se colocam internamente aos cidadãos e governos. Os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 mudaram de facto os paradigmas vigentes da segurança, a nível global. Criaram um grande alarme social em plena era da globalização da informação, algo inédito, pelo facto de se ter assistido em direto ao atentado terrorista que vitimou milhares de pessoas.

Desde essa data, outros ocorreram e tem-se reforçado a ideia da supranacionalidade das medidas de prevenção e combate ao terrorismo e ao crime organizado. A manhã do dia 11 de Março de 2004 em Madrid, marcada pela explosão em 4 comboios que mataram 191 pessoas ou a manhã do dia 7 de Julho de 2005, em Londres, onde 4 explosões atingiram o sistema de transporte da cidade, tendo feito 56 mortos, incluindo os terroristas, e ferido mais de 700, são exemplos ainda vivos na memória de quem presenciou essas imagens televisionadas. Ou em 22 de Julho de 2011 na pacífica Noruega, referência de Direitos Humanos, capital da Fundação Nobel, viu um homem de 37 anos espalhar o terror num atentado duplo matando 77 pessoas. Primeiro fazendo explodir um camião bomba em frente a prédios do governo, matando 8 pessoas e ferindo outras 209 e, momentos depois, abrindo fogo contra uma reunião da ala jovem do Partido Trabalhista, na ilha de Utoya, matando 68 dos 560 participantes. Durante uma hora e meia um só fanático terrorista fez da ilha o seu campo de caça, matando a esmo e atirando, inclusive, nas pessoas que fugiam da ilha a nado. O atentado Charlie Hebdo, em Paris, em 2015 e onze meses depois o massacre no Stade de France, as explosões no terminal de embarque do aeroporto internacional de Bruxelas um ano depois, o ataque em 2016 no aeroporto internacional de Istambul, o camião que avançou em direção a uma multidão de pessoas que assistiam à celebração ao Dia da Bastilha na Promenade des Anglais, em Nice, a tragédia na feira de Natal no mercado do centro de Berlim, os pesadelos em série em Inglaterra em 2017 frente ao Parlamento britânico, no Manchester Arena, na London Bridge ou os atentados em Barcelona em 2017. Este breve resumo dos últimos 20 anos, mostram que estas situações ocorrem quando menos se espera e do modo menos previsível.

Curiosamente, ainda recentemente o Primeiro-Ministro sueco convocou o Comandante das Forças Armadas para que o Exército, ao lado da polícia, lide com a onda de criminalidade sem precedentes em várias cidades daquele País, relacionada com a guerra entre gangues. Só este mês, já morreu mais de uma dezena de pessoas, incluindo adolescentes, em todo o país, e mais de 60 pessoas faleceram em tiroteios, no ano passado. Os últimos acontecimentos em Israel com a barbárie provocada pelos terroristas do Hamas só vêm aumentar as preocupações de segurança interna e a necessidade de cada País dispor de uma resposta firme, capaz e musculada a novas ameaças!

Porventura à luz de preocupações sérias com a segurança interna, tem havido uma vasta discussão sobre a participação das Forças Armadas neste domínio, com alguns políticos a considerarem que são também elementos relevantes e devem, nessa circunstância, poder e dever ser mobilizadas para uma estratégia de combate ao terrorismo, à criminalidade organizada e violenta e ao crime cibernético no âmbito do Sistema de Segurança Interna. É o que acontece, por exemplo, em França, onde, no estado de normalidade democrática, compete às Forças de Segurança o garante da Segurança Interna, e às Forças Armadas o da Segurança Externa, mas quando é acionado o Plano Vigipirate, as Forças de Segurança são apoiadas pelas Forças Armadas, em patrulhas mistas de forma a implementar o reforço da segurança nos locais mais sensíveis.

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Em matéria de Protecção Civil e Emergência Médica, o trabalho das Forças Armadas é já muito reconhecido e acontece com regularidade em função das necessidades do País. No caso do Exército, por exemplo, se olharmos para o empenhamento nos anos de 2022/2023, constatamos que, junto da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, dos Municípios, da Guarda Nacional Republicana e do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, foram realizadas 2707 e 1308 missões, respetivamente, além dos Protocolos com Braga, Boticas, Loulé, Mafra, Monchique, São Brás de Alportel, Sintra, Tavira e Viana de Castelo, em áreas como C2, Engenharia Militar, Apoio ao Combate a Incêndios, Reabastecimento e Serviços, Apoio Sanitário e Intervenção Psicológica, Manutenção e Transportes e Segurança e Vigilância a Fogos Florestais. Em 2022 as Forças Armadas, nos 3 Ramos, empenharam-se em 3149 missões com 3201 viaturas num total de 11013 militares e 1643 horas de voo em apoio sanitário e vigilância aérea, o que face aos efectivos atuais representa um esforço significativo em prol do País.

A questão da participação do Exército em missões de segurança interna é, contudo, mais complexa e levanta considerações de caracter ético, políticas e legais. A decisão de usar o Exército em operações de segurança interna é, antes de mais, política e, geralmente, está relacionada com a  natureza das ameaças à segurança nacional. Distúrbios civis graves, terrorismo ou outras ameaças que possam esgotar as forças de segurança devem ter como reserva de atuação as Forças Armadas. Para isso, é necessário que essa participação esteja em conformidade com a legislação nacional e a Constituição da República. Essa definição cabe ao Governo e Parlamento discutir, decidir e regulamentar. Devem nessa circunstância ser ponderadas as questões relativas à capacidade necessária e ao treino adequado por parte dos militares, bem como asseguradas as regras de empenhamento no policiamento comunitário, negociação de crises ou resposta a desastres. O emprego de força letal ou excessiva deve ser evitado, e a proteção dos direitos humanos e civis deve ser uma prioridade em coordenação com as Forças e serviços de Segurança, garantia necessária para que não aconteça a falta de apoio público que pode criar divisões na sociedade e complicar ainda mais a situação.

As Forças Armadas terão de ser, em permanência, o garante da defesa militar da República e, só com essa condição assegurada, poderão colaborar adequadamente com as Forças de Segurança na área interna. Aqui, cabe aos políticos e, em especial, ao Governo olhar o conjunto e dotar as Forças Armadas dos meios humanos, materiais e financeiros necessários a essa finalidade. A importância da Segurança Humana e das novas ameaças transnacionais anulam as tradicionais fronteiras entre a segurança interna e a externa e Portugal precisa de dispor, em qualquer momento, de capacidade para atuar rapidamente quando as forças de segurança já não tenham capacidade para lidar com a situação em reforço da necessidade coletiva de segurança e do direito dos cidadãos. A colaboração das Forças Armadas com as polícias civis face a ameaças críticas pode e deve ser reforçada no âmbito legal com a alteração do art.º 275º da CRP ou inclusão de um “estado de crise” na lei dos estados de sítio e de emergência; no âmbito operacional, com um Plano e linhas de comando claramente definidas – à semelhança do caso francês-; no âmbito logístico, com a dotação dos meios necessários e no da formação com treino adequado.

Antes da reforma estrutural, é necessária a reforma mental. Os políticos têm de abandonar os mitos ideológicos e o temor anacrónico quanto às Forças Armadas, elas são um instrumento do seu poder e não uma ameaça interna, bem como os intervenientes no processo, Forças Armadas e Forças e serviços de Segurança, abandonando a ideia das quintas e coutadas. Estas valências quando olhadas numa perspetiva conjunta, são mais valiosas somando que dividindo.

Está na hora de se ultrapassarem complexos que eram justificados há duas décadas, mas que na atualidade e face às ameaças existentes já não fazem qualquer tipo sentido. Constituem, isso sim, motivo de esbanjamento de recursos preciosos e geradores de ambiguidades incompreensíveis. Por último, parece-me pertinente colocar uma grande questão. Qual vai ser o Governo capaz de dar este passo ou qual será o partido político capaz de colocar esta discussão na ordem do dia e na agenda do Parlamento? A resposta parece ser óbvia e simples, esqueçam! Estamos bem assim até ao dia em que a chatice aconteça, o tempo está bom e o céu azul maravilhoso, como diz o Primeiro-Ministro!

Oxalá não chova no dia em que não tivermos guarda-chuva!