Temos ouvido dizer que a crise do SNS pode ser a ponta do iceberg. Eu discordo, creio que o colapso do SNS são apenas as gaivotas que voam sobre o gelo. Ao iceberg chamaram-lhe “contas certas” ou “o menor déficit da democracia” e é nesse iceberg que foram congeladas as carreiras dos funcionários do Estado, do pessoal da saúde, naturalmente, mas todos os outros ministérios e tudo o que necessita de “conservação”, basta olhar para o património, para as construções, do Estado (abstraio-me, por ora, das carências, que são muitíssimas, da parte operativa) – a falta de manutenção, agrava a cada ano que passa, a necessidade de conservação em 2%. Imaginem o valor total dos activos corpóreos e considerem 2% em cada ano e veremos qual o valor do déficit. As escolas que não sofreram obras faraónicas, as estações, as esquadras da polícia, os centros de saúde, os hospitais (os “velhos”, não os que acabaram de inaugurar) e, já agora as estradas, as do interior, aquelas que dependiam dos cantoneiros para se manterem transitáveis, e os comboios.
Em 2016 o Estado possuía 23 679 imóveis. Se pensarmos num custo de manutenção por m2 de edifício de 100 euros/ano, percebe-se facilmente a dimensão do iceberg. Também podemos falar do parque automóvel do Estado, da idade dos veículos, da poluição que produzem e do tempo em que não circulam porque estão avariados. Também as linhas de água que precisam de limpeza e desassoreamento, as áreas florestais dos Estado (como o pinhal de Leiria ou os parques nacionais).
Talvez não seja um iceberg, talvez seja mesmo uma parte significativa da calota polar…
E também não há dúvidas da falta de motivação da generalidade dos agentes públicos. Abraham Maslow teorizou, em 1943 sobre a motivação. Criou um modelo piramidal onde distribuía os indivíduos por patamares de necessidades. No seu esquema, o topo da pirâmide era ocupado pela realização pessoal, pessoas que se automotivam, supostamente só os níveis mais baixos se preocupam em “ser motivados” por coisas banais, como o vil metal. Sem dúvida um bom teórico, para uma época onde as ofertas eram escassas (ninguém sonhava com luas de mel nas caraíbas, ou safaris fotográficos no Quénia) pelo que as necessidades financeiras eram supridas com muito menos do que são hoje. Mas mesmo “as básicas” necessidades, como pagar uma renda de casa, passou a ser um luxo. E já agora, a equidade, como indispensável factor motivacional. O ordenado mínimo na TAP é de 1410 euros, o vencimento de entrada de um mestrado no Estado é de 1007euros.
Posso até admitir que os problemas não sejam exclusivamente financeiros, agora de gestão são certamente, basta comparar o número de médicos por habitante nos diversos países. E como os hospitais em PPP tinham bom desempenho.
Mesmo assumindo que os vencimentos não estavam congelados no Estado, como o resto do iceberg, como querem motivar investigadores e técnicos (incluindo claro profissionais de saúde) se tudo falta? As condições de trabalho não motivam ninguém. Convém não esquecer que, se retirarmos as autarquias da equação, mais de 50% dos trabalhadores do Estado têm formação superior (médicos, enfermeiros, professores, investigadores, técnicos em geral).
A reforma que foi feita no Ministério da Saúde quando a pasta esteve na mão de Paulo Macedo faz saltar hoje aos nossos olhos o que faz não ter, nos ministérios, pessoas com capacidade de gestão de recursos.
Todos os praticantes da “política” falada, discursiva, repetem a falácia do “elevador social”, que é (seria) a educação. Esquecem-se, contudo, de alertar que os elevadores também descem. Há 20 anos os licenciados estavam no 10º andar, hoje estão a passar a segunda cave. Assim não vamos lá.
Há notícias frequentes da fraca qualidade dos nossos gestores, das empresas privadas, mas raramente se fala da total impreparação dos nosso político-gestores. Acusam os privados da baixa produtividade do país, quando fábricas com cinco trabalhadores, que funcionam na garagem da moradia do dono com a mulher a fazer a escrita, conseguem pagar vencimentos, impostos e taxas. Veja-se por oposição como gestores de facção faliram o hospital da Cruz Vermelha.
A revolução que nos falta não é digital, é organizacional.