Mais de quarenta anos passam desde que futuras arquitetas sofreram terríveis momentos que a sociedade se esforçou por ignorar, apesar do aparente escândalo e choque. Depois destes quarenta anos vemos agora que a licenciatura mudou mas a prática miserável se mantém e que a resposta dessa mesma sociedade é pífia, estéril e envergonha-nos a todos enquanto país (e pais).

Dizem me que é preciso sentir para se escrever sobre um tema e eu, não sendo mulher, não poderia, com total propriedade, escrever sobre assédio. Posso porque sinto! Sinto nojo, repulsa e vergonha. Uma enorme revolta por termos, enquanto sociedade, tolerância para atos que magoam, denigrem, humilham e traumatizam todas e todos que, impotentes na sua defesa, se sentem diariamente violados. Não uso a palavra em vão porque talvez assim se perceba que não é preciso penetrar alguém para que essa mesma pessoa seja violentamente violada na sua mais profunda intimidade. Na última semana, fomos confrontados com um caso de denúncia de assédio. Como uma barragem, que apenas espera que abram as comportas para libertar litros de água, imediatamente outras histórias começaram a surgir. No momento em que escrevo este texto já se conhecem mais de 50 casos na Faculdade de Direito e meia dúzia na Universidade de Coimbra. Já era grave se fosse “apenas” um. É uma vergonha para nós enquanto sociedade serem todos estes.

Assédio

Segundo a APAV, o assédio é todo o comportamento indesejado, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. Foco-me na palavra “indesejado”. Se existir dúvidas sobre qualquer ação, palavra ou comportamento, o facto de se praticar sem o consentimento ou desejo da outra pessoa retira qualquer dúvida à conclusão a que se pode chegar.

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Tudo isto se agrava num ambiente universitário, quando o abusador é um professor. Já seria grave por parte de colegas ou amigos, mas agrava substancialmente a relação de dependência e hierarquia entre as partes. Importa ainda, observar nas definições a questão da forma. Muito se escreveu que as mensagens enviadas não continham qualquer conteúdo relevante. Não podendo chegar a esta conclusão por desconhecer o teor de todas as mensagens em causa, volto às definições facilmente consultáveis no site da APAV: “as formas de vitimização podem ser…realizar telefonemas, enviar cartas, sms ou e-mails indesejados”. Parece-me, salvo opinião mais avalizada, não existirem dúvidas que foram enviadas mensagens e que as mesmas não eram desejadas.

Os números da nossa vergonha

Há sempre quem defenda que não foi “nada de especial”. Há sempre vozes que toleram e que tentam “normalizar” um comportamento que não pode ser visto como normal. É importante olharmos para os números para que possamos daí extrapolar para a necessidade de não deixar rotular de “normal” o que magoa, que mutila emocionalmente, que condiciona e que, em casos extremos, mata. Num estudo europeu realizado em 2021, podemos ler que um em cada três europeus foram vítimas de assédio ao longo da sua vida. Vamos colocar em número de vidas para podermos ter um primeiro impacto: 110 milhões de pessoas foram vítimas de assédio. Focando o estudo apenas em Portugal e nos últimos cinco anos, concluímos que 24% dos inquiridos foram assediados nesse período. Um em cada cinco adultos portugueses foi vítima desta prática, mas “apenas” 46% denunciou a prática porque entendeu que “não era suficientemente grave” e isto é em si mesmo grave porque é a consequência da normalização que a sociedade não consegue evitar.

Termino com um último dado: duas em cada três mulheres assume evitar ir para locais com pouca gente. Deixem-me elaborar um pouco sobre este número. O que está por detrás desta “estatística” é a amputação de liberdade que as mulheres sentem. É o medo e a limitação da sua autonomia. Enquanto sociedade que lutou, no passado recente, por liberdade, não podemos pactuar com perdas dessa mesma liberdade.

Não, não é algo normal!

Quem leu alguns dos comentários e entrevistas que vieram a público nos últimos dias, pode ter a tentação de achar que esta é uma “tempestade num copo de água”. Quem olha para a capa de um jornal e vê uma senhora, com inegáveis responsabilidades na faculdade de direito, anunciar que “há docentes da faculdade que são casados com pessoas que foram suas alunas”, pode ter a tentação de desvalorizar o que nunca deveria ter sequer acontecido. Não vou concentrar-me nas premissas destas pessoas para tentarem retirar peso à prática de assédio, prefiro mostrar o outro lado, o lado que verdadeiramente importa, o lado do qual toda a sociedade sem exceção deveria estar: as vítimas.

A relação entre um professor e um aluno é sagrada. A confiança que uma criança coloca num professor e que se estende pela sua vida, não deve (não pode!) ser violada. Um dos relatos que li descreve uma aluna que, num estado de enorme fragilidade emocional, se dirige para um exame. Ao chegar ao exame é deixada para último lugar. São horas de ansiedade, não apenas pelo exame, pela importância daquela avaliação, mas também, e quem sabe, acima de tudo, pela possibilidade real de ter de ficar sozinha numa sala com um professor. Após um exame, digo eu, dificultado e uma nota não desejada, a aluna é “consolada” e convidada para “um copo”. Conseguimos todos perceber o quão errado tudo isto está? Será que conseguimos, enquanto sociedade, não continuar a tolerar este comportamento?

Vi também, confesso com perplexidade, a tentativa de diminuir a importância de “umas simples mensagens, que nem tinham qualquer conteúdo sexual”. Sinto uma necessidade de me “afastar” para tentar ser objetivo. Mensagens às duas da manha para alguém com quem não temos uma relação pessoal, não são passíveis de ser normalizadas. Quando estas mensagens são enviadas por um professor para uma aluna, sem enquadramento algum e apenas com um propósito possível, a sua denúncia e condenação é obrigatória, porque, para quem ainda possa ter dúvidas: não! Não é normal nem é admissível!

Mais que um apelo, uma obrigação de uma sociedade evoluída

Quero terminar olhando para o que todos vemos sem ver. Aquelas frases “tradicionais” que justificam o injustificável: “somos latinos”, “um piropo é um elogio”, “com aquela mini saia, estava à espera de que?”. Eu podia continuar. Todos conhecemos um elevado lote de frases feitas, algumas proferidas por lábios femininos sobre as próprias mulheres. Como pai de uma menina, filho de uma mãe e irmão de uma irmã, mas, acima de tudo, como homem, permitam-me dizer-Vos: não! O respeito pelo o outro, a tolerância perante a diferença, a perceção e obrigatoriedade de proteção aos mais fragilizados e a defesa da liberdade individual de cada um é “o” pilar fundamental de uma sociedade, seja ela nórdica, latina ou africana. Portugal só pode ser um país evoluído, os portugueses só podem ser um povo respeitado se formos, enquanto país e sociedade, respeitadores e inclusivos.

O que se fala agora não se passa só nas Universidades, não acontece só na rua e nas praias, não é “normal” só nas discotecas. Esta prática é, infelizmente, comum nas empresas, muitas das quais não têm qualquer suporte nas suas estruturas de recursos humanos para criar uma rede de apoio. Devemos estar atentos, acolher as partilhas e desabafos de forma séria, sem desconsiderar e nunca esquecer que, se em outras ocasiões a vítima sofre, nas empresas existe uma pressão acrescida pela dependência, tanto financeira como profissional, que leva ao medo, à coação e, muitas vezes, à cedência.

Deixe-me terminar com um pensamento que me preocupa e me pesa quando escrevo estas linhas. Se olhamos para tudo isto com preocupação e repúdio, há um número, que não existindo, ecoa de forma surda em todos estes casos: o número de suicídios provocados por assédios e comportamentos abusivos. Não encontrei qualquer estudo que nos dê dados fidedignos, mas alguns países têm casos públicos desta prática que facilmente podem ser consultados online. O assédio pode matar e enquanto continuarmos a ignorar isso seremos cúmplices de uma prática que causa dor, que causa distúrbios, que destrói pessoas e famílias e, em última análise, que mata. Não permitam que se continue a morrer assobiando para o lado. O assédio é crime e não deve, nem pode, ser normalizado.