Quando o PSD apresentou uma recomendação à Câmara de Lisboa para proteger do “revisionismo literário” as bibliotecas municipais, declarou que esta prática de alterar os livros era comparável à censura própria dos regimes totalitários. O documento invocava o nazismo e o fascismo, já que em matéria de horror e prepotência são estes os regimes mais presentes na memória desta parte ocidental da Europa. Vou completar esta memória, contra a cartilha da esquerda ainda hoje recitada pelos próceres do Estado e da alegada “cultura” a benefício da Pátria desejadamente analfabeta. Lembro os regimes comunistas. Neles a censura sempre foi política oficial.

Lembro a União Soviética, onde Aleksandr Solzhenitsyn foi preso pela primeira vez ainda antes de terminar a segunda guerra mundial, por lhe terem interceptado uma crítica a Stalin numa carta a um amigo. A correspondência não era sagrada na União Soviética. Onze anos antes do “Arquipélago de Gulag”, em Novembro de 1962, Solzhenitsyn publicou “Um dia na vida de Ivan Denisovich”, sobre a vida dele num “campo especial” para prisioneiros políticos. A publicação foi autorizada por Khrushchev por lhe servir a ideia de circunscrever ao período de Stalin todos os horrores. De resto, uma fraude que Solzhenitsyn nunca aceitou e que, aos olhos da União Soviética, constituiu o seu maior crime político: para ele não existia “estalinismo”; existia comunismo. Todo ele igualmente infernal. Por este crime de opinião, Solzhenitsyn viveu perseguido, torturado, condenado até ser expulso, em 1974. Primeiro o NKVD, depois o KGB. Puseram-lhe escutas em casa, ouviram-lhe as conversas com os amigos, com os filhos, com a mulher. Não voltou a ter um minuto de privacidade. Hoje é fácil fazer uma biografia de Aleksandr Solzhenitsyn; toda a vida dele está gravada e transcrita, guardada nos arquivos do KGB.

Lembro Cuba, onde Reinaldo Arenas, escritor, poeta, e homossexual, foi comunista até deixar de ser. “Antes que anoiteça”, a autobiografia publicada em 1992, serviu de base ao filme com o mesmo nome, de 2000, com Javier Bardem no papel de Arenas. Dizia que em Cuba não era proibido ser homossexual; o que não se podia era ser homossexual e, ao mesmo tempo, opositor do regime. A liberdade sexual estava limitada pela opinião política. Os apoiantes do regime eram livres de viver livremente a sua sexualidade; aos outros era servida a perseguição.

A própria expressão “revisionismo literário” é inadequada. Desde logo porque o revisionismo é, muitas vezes, não só legítimo como necessário. Por exemplo, aplicado à história. Sucede sempre que uma versão dos acontecimentos, aceite por largo período de tempo, é substituída por outra, em resultado do trabalho de um historiador que, olhando para outros dados, ou fazendo deles uma interpretação diferente, estabelece um novo conhecimento genericamente reconhecido. Sucedeu com a Revolução Francesa e o livro “Citizens: A Chronicle of the French Revolution”, de Simon Schama, publicado em 1989. E sucedeu em Portugal, com “O poder e o povo”, de Vasco Pulido Valente, publicado pela primeira vez em 1976, que destruiu a ortodoxia marxista em vigor e mostrou que a I República tinha sido “uma ditadura terrorista”, e um regime assente numa “cultura política que perseguia sem escrúpulos (e, às vezes, matava) uma extensa e indeterminada multidão de suspeitos”. A I República, a quem o PS insiste em prestar homenagem oficial, atingiu limites em número de presos políticos dos quais nenhum outro regime do Portugal moderno, incluindo o Estado Novo, algum dia se aproximou.

Mas um livro é uma obra de arte, e uma obra de arte é um documento. Não passa (ou ainda não passou) pelas cabeças destes polícias da nova moralidade alterar os quadros de Caravaggio, ou de Rubens, ou de Velázquez. Mas andam por aí alterando o que os autores escreveram. A lei prevê uma punição para quem alterar ou rasurar o que alguém assinou. Não, não se trata de “revisionismo literário”, mas de falsificação. Um livro é um documento assinado.

Convém relembrar histórias horríveis e olhar para as coisas como elas são, sobretudo aqui, em Portugal, desgraçado país cujo atraso também se expressa pela natureza do seu espectro político. É que felizmente não existe, com representação parlamentar, na Assembleia da República ou, para voltar ao início deste texto, na Assembleia Municipal de Lisboa, nenhum partido que se reconheça a si próprio como herdeiro do nazismo ou do fascismo. Mas há vários herdeiros do comunismo. E o PS, herdeiro estridente da I República, votou contra a recomendação do PSD. É importante e oportuno perceber exactamente o que eles representam.

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