São sensivelmente onze horas na cidade de Braga, num sábado como tantos outros, e bebo neste momento o meu café na Brasileira. Perdido nas conversas que me rodeiam, noto como tema essencial a visão que cada um transporta para as mesas sobre a barbárie que tem acontecido na Ucrânia. Noutro extremo do café, observo três homens com visões políticas distintas a discutir o futuro do país. Qual o espanto nesta descrição de um sábado de manhã como tantos outros na Brasileira? Para nós, ocidentais, que vivem em democracias liberais, nenhum. Esta possibilidade de beber um café, de falarmos de política em público é tão despretensiosa que se torna irrisória a possibilidade de refletir sobre esta ação.
Contudo, a possibilidade de bebermos um café, criticando um membro do governo sem pensarmos nas consequências dessa crítica, nem sempre existiu em Portugal e continua por se cumprir em muitos lugares do mundo. George Steiner resume muito bem a importância de tomar um café em liberdade no nosso espaço político: “a Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa, frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos Cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia… Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa”.
Os nossos atos irrefletidos de liberdade, como poder beijar alguém numa rua, partilhar de forma livre o nosso pensamento sem consequências, de criticar e não ser julgado por isso, de poder existir num espaço público cuja única regra é imposta pela lei sufragada por todos é marca de água das nossas democracias, no fundo o nosso bem mais precioso, a liberdade. Quando falamos de impérios, temos que entender que aquele que temos para oferecer ao mundo é efetivamente o império da lei, aquele que garante a qualquer um de nós a possibilidade de viver em liberdade, dentro dos limites que a comunidade entende como possíveis para as relações individuais. Toda esta liberdade, de agir sem pensar nas consequências políticas e da privação que os nossos atos possam ter, é a genética moral herdada pelas revoluções das luzes e fundadoras do liberalismo.
Hoje, a guerra da Ucrânia, a invasão injustificada, colocou em evidência, através do extremo da banalidade, a importância de um sistema que tenha como fim apaziguar a violência (a paz), procurando reconhecer que nem todos concordaremos com tudo (tolerância), mas consagrando através de mecanismos jurídicos (leis, separação de poderes, tribunais, etc.) um mínimo essencial para a convivência humana (constituições). Esse sistema, que muitos têm vindo a atacar, tem o nome de liberalismo e continua a ser o pilar da construção a que demos o nome de humanidade.
Num artigo para o Financial Times, Fukuyama cunhava esse liberalismo através das seguintes premissas: “It recognises that people will not agree on the most important things — such as which religion to follow — but that they need to tolerate fellow citizens with views different from their own”. Ou seja, tendo como premissa essencial o respeito pelas diferentes visões, a criação de uma igualdade de direitos, o conceito de dignidade individual, a lei como fundamento de decisão e os comandos da democracia mitigados por um conjunto de sistemas de freios e contrapesos (Montesquieu).
Hoje, estes valores desenvolvidos por Locke, Voltaire, Bentham, Constant, Kant, Berlin, Hill Green, Hobhouse, Rorty, Rawls, entre muitos outros, são primitivamente atacados por aqueles que têm apenas como pressuposto político o contrário de uma visão liberal para a sociedade, o absoluto. Aquilo que vemos crescer no espetro político da esquerda e da direita são visões morais da sociedade que visam oferecer ao mundo uma única visão, uma única verdade. Os extremos políticos que hoje ganham em espaço diferem conforme a sua família política de proveniência, mas enquadram-se nesta premissa totalitária da verdade. Putin é o exemplo disto, refugiado numa verdade por si imposta ao povo Russo, por uma única visão do mundo, procura impor a sua vontade, não tolerando qualquer espaço com visões diferentes da sua, reinterpretando a história como motor legítimo para uma invasão.
Infelizmente, foi preciso uma guerra para a União Europeia entender que a sua organização representa os pilares e a concretização do liberalismo moderno. Um local de respeito e igualdade, sendo a lei o peso e medida no julgamento das ações dos seus indivíduos e instituições, um local de respeito pela ideia do indivíduo como ser dotado de liberdade. Infelizmente, foi preciso vermos a concretização dos extremos para entendermos a sua génese e resultado.
Hoje, mais que nunca, é altura de todos aqueles que defendem a democracia e valores liberais garantirem que o espaço político não será ocupado pelos extremos de esquerda ou direita. Hoje, é altura de defender o nosso modo de vida, a liberdade. Hoje, temos de voltar a escolher a tolerância, face à verdade absoluta.
Sentar-me num café e não ter medo das palavras a proferir é a melhor marca que a Europa deixou no mundo. Escolher o café para resolver todos os nossos problemas, os problemas da comunidade, deverá ser a marca que a Europa deverá reafirmar no mundo. Estou certo de que em Moscovo não seria livre para tomar um café como o de hoje.