As criptomoedas têm atraído um grande interesse mediático, mas quase nunca por boas e verdadeiras razões. Aliás, é tanta a confusão nesta importante matéria que a introdução das moedas centrais dos bancos digitais (CBDC) pode vir a ser considerada mais virtuosa e significativa do que as próprias criptomoedas. O problema principal é que estando as pessoas distraídas neste “novo normal” pós-Covid-19, o preço a pagar por esta confusão pode ser o fim da própria democracia.

A natureza do dinheiro é mal compreendida, apesar da sua importância na vida das pessoas e no desenvolvimento das sociedades. A confiança é o principal ingrediente do dinheiro. São as expectativas sobre o valor de uma moeda que ditam esse mesmo valor, sendo que a história do dinheiro está ligada à história da confiança humana1 e à evolução das técnicas que visam o rigor contabilístico2. Ora, o preço de tal rigor e confiança baixou muitíssimo devido às criptomoedas porque elas dispensam intermediários (e.g., bancos). Na verdade, a segurança destas novas moedas depende apenas da matemática: recorrendo a técnicas avançadas de criptografia, a confiança nas transações com criptomoedas é garantida por consensos registados entre os seus utilizadores na Internet. Isto permite evitar custos de transação, tais como as comissões bancárias e a senhoriagem inerente à própria inflação (que pode disparar com as elevadas emissões de moeda ultimamente registadas). Ao contrário, o preço a pagar pelas CBDC será muito maior e pode incluir até a perda de privacidade e liberdade. Aliás, é isto que já acontece na China com a CBDC “yuan digital” que em breve se tornará global.

Entretanto, no passado dia 7 de Setembro fez-se história. Uma nação soberana, El Salvador, passou a confiar numa moeda descentralizada e a utilizá-la como moeda nacional. No entanto, este foi um marco quase ignorado pela comunicação social.

Como se o dinheiro não fosse um dos fatores mais importantes na vida das pessoas, a notícia da adoção oficial da criptomoeda Bitcoin em El Salvador mereceu pouco destaque. Mais: as escassas notícias sobre o assunto incidiram nos supostos defeitos técnicos desta moeda, que teriam originado quebras de serviço e impossibilitado pagamentos logo no primeiro dia da sua utilização. Também foi convenientemente “explicado” que tal falha técnica estaria na origem de uma grave quebra de confiança, tendo provocado a queda das cotações das criptomoedas em geral e não apenas do Bitcoin. A fazer fé nas notícias, a oficialização do Bitcoin em El Salvador teria sido um erro desastroso. Mas será mesmo assim? Observemos os factos:

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  1. No dia 7 de Setembro de 2021, El Salvador começou a utilizar a primeira moeda descentralizada da história;
  2. Nesse dia, a cotação da moeda Bitcoin caiu cerca de 10%, uma variação corriqueira e perfeitamente natural numa moeda ainda muito volátil dado o seu pioneirismo. Na verdade, esta cotação já registou oscilações bem maiores;
  3. Como acontece desde 2009, as transações efetuadas nesta nova moeda ficaram a salvo de taxas e comissões bancárias, pois, foram realizadas diretamente entre as pessoas sem a intervenção de intermediários (e.g., VISA);
  4. Prosseguindo a evolução do dinheiro, a rede blockchain da moeda Bitcoin continua a funcionar ininterruptamente e na perfeição. As quebras de serviço nos pagamentos realizados no dia 7 de Setembro em El Salvador foram provocadas, sim, pelo congestionamento temporário da aplicação informática criada pelo governo para simplificar a utilização desta criptomoeda pela população.

Perante o profundo significado político-económico destes acontecimentos e as suas futuras implicações na vida das pessoas, foi confrangedor assistir à chicana noticiosa nos telejornais no dia seguinte. Acredito que tal baralhação resultou sobretudo da ignorância sobre a matéria. Os jornalistas são pessoas sérias e competentes e há que ter esperança na investigação profissional de uma questão tão importante como é o reconhecimento oficial de uma moeda descentralizada (que sempre funcionará de forma tecnicamente segura independentemente da agenda política e das notícias a seu respeito).

É bom compreender que a génese da confiança mudou e veio alterar o enquadramento ético da sociedade3.  A internet modificou o mundo e a tecnologia blockchain modifica agora a própria Internet. A rede blockchain significa para as transações em geral o mesmo que a rede internet significou para a comunicação social e desta vez os intermediários afetados não serão apenas os mass media. Simplesmente, El Salvador foi o primeiro país a colocar o dinheiro da população a salvo de gatekeepers políticos e financeiros (uma atitude algo forçada pela fragilidade económica deste país, sendo que outros se seguirão). Assim, esta nação poderá beneficiar, em primeira mão, da mesma redução de custos de transação que torna previsível a prevalência económica das criptomoedas a nível global4. Seria bom que os países mais desenvolvidos tomassem medidas atempadamente, mas “enquanto o pau vai e vem folgam as costas” e uma tal descentralização de poder nunca será pacífica. Tal relutância pode ser muito grave para a democracia, porque a centralização dos dados recolhidos sobre os cidadãos (e.g., nas redes sociais) e o seu cruzamento com metadados associados às CBDC podem servir para devassar a privacidade e condicionar os pagamentos efetuados por qualquer consumidor, tornando-o política e economicamente refém de regimes autoritários. Assim, urge investigar as implicações políticas desta mudança, a merecer mais destaque noticioso face aos riscos para a democracia e a liberdade5.

Referências:

[1] Vieira, J. P., & Sousa, C. N. (2021). The Evolution of Trust in Money: A Historical Approach from Clay Tablets to Blockchain. In D. Rodrigues (Ed.), Political and Economic Implications of Blockchain Technology in Business and Healthcare (pp. 43-68). IGI Global. Disponível aqui.

[2, 3] Rodrigues, D. D. (2021). “Blockchanging Trust: Ethical Metamorphosis in Business and Healthcare”. In D. Rodrigues (Eds.), Political and Economic Implications of Blockchain Technology in Business and Healthcare (pp. 1-41). IGI Global. Disponível aqui.

[4] Rodrigues, D. D. (2021). “Blockchanging Money: Reengineering the Free World Incentive System“. In D. Rodrigues (Eds.), Political and Economic Implications of Blockchain Technology in Business and Healthcare (pp. 69-117). IGI Global. Disponível aqui.

[5] Rodrigues, D. D., & Lopes, P. S. (2021). “Blockchanging Politics: Opening a Trustworthy but Hazardous Reforming Era“. In D. Rodrigues (Ed.), Political and Economic Implications of Blockchain Technology in Business and Healthcare (pp. 118-159). IGI Global. Disponível aqui.