Ainda nesta década, praticamente todas as nossas chaves serão digitais. Por serem práticas e inteligentes, tal poderia ser conveniente. No entanto, a centralização dos dados está em rota de colisão com a democracia, em larga medida por culpa da desinformação.
Não duvidemos que as chaves digitais serão programadas: sem pagar a renda de casa, a porta não abrirá; atrasando as prestações do carro, ele não pegará. Mais: as anunciadas moedas digitais centralizadas obedecerão a contratos inteligentes, e quem se desviar das normas político-sociais poderá ser obrigado a retroceder nos seus hábitos de consumo. Esta “pandemia digital” já desponta na China e irá disseminar-se a nível global.
A centralização de dados e manipulação da informação já deram um ar da sua graça no mundo livre, nomeadamente, conduzindo à segmentação e radicalização dos utilizadores das redes sociais. Basta observar o índice de posições extremadas em diversos assuntos. Quem não se recorda da invasão do Capitólio norte-americano?
A procissão ainda vai no adro e a versão centralizada das moedas digitais irá facilitar o controlo do estado sobre os cidadãos, sobretudo com a eventual proibição das criptomoedas. A retirada de circulação das moedas digitais descentralizadas equivale à interdição da utilização de chaves criptográficas privadas por parte dos cidadãos, impedindo a proteção dos dados pessoais e das transações digitais com passwords genuínas (obviamente, as “passwords” que nos dão a escolher não são secretas).
Apesar de a criptografia ser a única proteção contra a pandemia digital que se avizinha, a desinformação vem convencendo as pessoas a “entregar o ouro ao bandido”, nomeadamente alienando as únicas chaves que impedem o livre acesso à informação e a centralização dos dados pessoais à ordem dos donos disto tudo.
Na era digital, perder as chaves da privacidade é alienar o direito à propriedade e à liberdade. Se a utilização de chaves criptográficas privadas for boicotada oficialmente, por exemplo, proibindo-se as criptomoedas, a faculdade básica de atestar a autenticidade e a propriedade dos dados sairá da alçada dos cidadãos. Tal limitação irá minar os fundamentos da própria democracia. Sem poder resguardar informações sensíveis, os indivíduos não terão livre-arbítrio sobre as suas transações. Na verdade, só as chaves criptográficas privadas permitem que os cidadãos protejam múltiplos aspetos da sua vida particular sem recorrer a intermediários, dinamizando a partilha de informação e a troca de valor na sociedade. Por isso, elas são chaves fundamentais para compatibilizar a autonomia individual com o progresso comunitário.
Os dados relativos à informação noticiosa e aos incentivos humanos devem ser processados de forma cristalina. Tal implica o acesso seguro a redes digitais publicamente escrutináveis. Felizmente, técnicas avançadas de criptografia vieram conciliar privacidade e transparência na própria Internet, garantindo a autenticidade e a integridade das informações e transações realizadas de forma descentralizada. Por isso, as chaves criptográficas privadas são as verdadeiras guardiãs da democracia na era digital.
É significativo que Elon Musk compre o Twitter com a anunciada intenção de tornar totalmente transparentes os algoritmos que validam as informações neste fórum social, sendo urgente compreender que a opacidade dos critérios de programação das moedas digitais é tão ou mais preocupante, até porque o dinheiro-vivo tem os dias contados. Musk sabe isto e muito em breve o Twitter servirá para trocar valor. Existindo liberdade para tal (o que não é certo, pois esta mudança ameaça o status quo) as pessoas utilizarão o Twitter para criar mercados e fazer negócios. Por exemplo, os criadores de conteúdos irão usá-lo para verem os seus conteúdos remunerados com criptomoedas. Penso que esta descentralização digital é altamente recomendável, considerando-a mesmo indispensável para a continuidade da democracia liberal e do mundo livre.
Depois de os algoritmos de monetização dos dados das redes sociais terem servido para aumentar a riqueza dos proprietários dessas plataformas digitais, os algoritmos de politização das moedas digitais dos bancos centrais (CBDC) irão servir para concentrar o poder político. Ora, se já é mau as redes sociais manipularem os utilizadores, pior será as moedas digitais controlarem os consumidores. Este risco aumenta com o eventual monopólio das CBDC, fruto da desinformação que visa denegrir as criptomoedas e evitar a concorrência por elas criada.
As CBDC podem fazer tábua rasa da democrática separação de poderes, escancarando digitalmente as carteiras dos cidadãos para o poder político estipular individualmente o poder de compra dos consumidores. Se pensa que tal complexidade técnica é inviável, está a subestimar o poder conjugado das tecnologias blockchain, big data e inteligência artificial, entre outras. Claro que o silêncio da classe política sobre uma matéria tão importante como esta (mas que ainda não suscita votos) muito prejudica as pessoas, sendo que a comunicação social e a desinformação não têm ajudado.
A verdade é que Elon Musk tem razão e as redes digitais só podem ser utilizadas em liberdade e segurança se forem programadas em código-fonte aberto (open source). Por maioria de razão, o mesmo acontece com as moedas digitais. Em ambos os casos, essa desejável transparência só será possível caso as chaves criptográficas privadas continuem a garantir a autonomia e a privacidade dos utilizadores. No entanto, tudo indica que até o mundo livre está tentado a seguir o caminho oposto.
Despojados das chaves que operam redes digitais abertas e transparentes, ficaremos emaranhados nas redes opacas do poder central. A desinformação explicará aquilo em que devemos acreditar e as moedas digitais centralizadas só darão boas notas a quem aprender a lição. Se nos cegam com areia para os olhos, aceitamos qualquer esmola.
Claro que a tecnologia pode e deve ser utilizada de forma diferente. As chaves criptográficas privadas estabelecem a confiança necessária para a imperativa descentralização digital, viabilizando a independência noticiosa preconizada por Musk e a coexistência de milhares de criptomoedas oriundas da sociedade civil. Aliás, com a confiança e a transparência instituída pela tecnologia blockchain, a livre competição entre sistemas monetários, defendida por Friedrich Hayek, fundador da Escola Austríaca e vencedor do Prémio Nobel da Economia em 1974, ganha uma nova razão de ser. Pela primeira vez na história, a mão invisível do mercado pode ser aliada à mão visível da consciência comunitária.
Em vez de termos um dinheiro cego a todos os valores menos ao valor do dinheiro, teremos um sistema de incentivos humanos multidimensional, composto por criptomoedas capazes de representar capital e trabalho. Por estranho que pareça, estas novas unidades de valor podem desempenhar funções específicas, permitindo acalentar a esperança de que o dinheiro venha a espelhar realmente o valor humano. Trata-se de libertar um novo sistema de incentivos no mercado para exortar à criatividade e ao empreendedorismo ético, visando a sustentabilidade dos ecossistemas comunitários.
Pelo contrário, se a desinformação triunfar e conduzir a um monopólio de moedas digitais centralizadas, passaremos de cavalo para burro; pior do que ter um dinheiro amoral, será ter um dinheiro imoral, exclusivamente ditado pela ambição dos poderosos. Até porque já sabemos que as chaves do poder são as mesmas que abrem os portões da guerra e da opressão. Uma vez “reguladas” as criptomoedas, não haverá mercado de moedas digitais para regular o “regulador”…
Se os cidadãos impolutos forem impedidos de utilizar chaves criptográficas privadas e protocolos informáticos descentralizados, todos os nossos dados serão centralizados. Nesse caso, o desígnio do poder será recorrer à inteligência artificial para interpretar gigantescas bases de dados acerca dos cidadãos, visando “personalizar” a informação dirigida a cada indivíduo e programar a respectiva carteira digital para não deixar nada ao acaso. Assim, todos teremos múltiplos incentivos para servir o poder de mão beijada.
É por isso que devemos mudar o canhão da fechadura da democracia e não perder de vista as chaves da paz e da liberdade na era digital.
