1 A moeda da discórdia

As guerras ecoam sinistramente a disfuncionalidade do nosso principal sistema de incentivos económicos: o dinheiro. As suas limitações traduzem-se num círculo vicioso alimentado por miséria material e moral; a pobreza é terreno fértil para a doutrinação radical e o terrorismo, enquanto os recursos dos cidadãos se evaporam no vórtice da ambição e da vertigem do poder.

A raiz do problema é que as moedas atuais não abrangem a representação de valores humanos fundamentais. Excetuando o facto de acionarem máquinas de bebidas, lavagens automáticas e pouco mais, elas não têm quaisquer funcionalidades específicas. Enquanto o dinheiro ancestral, existente muito antes da invenção da moeda, se baseava na memória coletiva que ia fixando e atualizando a noção tribal de quem devia o quê a quem (alimentos, favores, etc.), as notas atuais não têm sequer a funcionalidade de uma moeda de 50 cêntimos quando se trata de retirar carrinhos do supermercado. Por esta razão, por atender unicamente a uma dimensão estritamente pecuniária, o dinheiro atual é cego para múltiplos valores humanos, não servindo para criar sistemas monetários alinhados com a paz, o bem-estar social e a sustentabilidade. Mas isso pode mudar, pois, recentemente, a memória coletiva das transações da “tribo” passou a ser extensível à nossa “aldeia global”.

2 O dinheiro inteligente

A revolução financeira em curso é silenciosa, com a criptografia avançada e a Inteligência Artificial (IA) a servirem para programar moedas digitais multifuncionais semelhantes a vouchers ou cupões inteligentes. Com discernimento político, garantirão transações monetárias orientadas para metas humanitárias e sustentáveis que promovam a paz e a dignidade. Elas viabilizam contratos automáticos (smart contracts) que permitem financiar populações hostis e potenciais inimigos, com a garantia de que só serão usadas conforme as condições estipuladas, evitando, logo à partida, surpresas desagradáveis para quem financia. Afastando muitos da miséria, este novo dinheiro já não irá regar as férteis pastagens de facciosos e oportunistas que dividem para reinar.

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Esta não é uma mera proposta idealista, podendo ser levada a cabo nos próximos anos, já que se baseia numa inovação tecnológica recente, mas robusta, que estende a própria confiança financeira através da Internet, compatibilizando a privacidade e a proteção de dados sensíveis com a transparência de transações descentralizadas em segurança. O resultado desta combinação é a possibilidade de deter a fraude e a corrupção mediante a responsabilização de todos os intervenientes. Entretanto, sabendo-se que a inteligência é amoral (não é moral nem imoral), é necessário um esforço consciente da sociedade para que as moedas digitais sejam programadas eticamente, sendo conveniente alertar os cidadãos do mundo livre para o perigo de estas moedas digitais serem facilmente centralizadas e cunhadas à medida de regimes autoritários, tal como já acontece na China.

3 A reforma imprescindível

A urgência em mudar de rumo é óbvia, e os dirigentes políticos devem compreender rapidamente as potencialidades e ameaças da revolução digital. As maiores prioridades para a sobrevivência da democracia e da liberdade são: (i) lidar com a IA em segurança; (ii) enfrentar os desafios de uma iniquidade socioeconómica agravada pelas nefastas consequências da automação sobre o desemprego, nomeadamente, mediante a instituição de um Rendimento Básico Universal ou Universal Basic Income (UBI). É este o sentido do projeto global “Worldcoin”, apadrinhado por Sam Altman, CEO da OpenAI (a empresa que criou o ChatGPT), criado para defender os humanos caso a IA resolva vestir pele de cordeiro para nos ludibriar, bem como para garantir a eficácia e a ausência de fraudes na atribuição do UBI.

Na encruzilhada da tecnologia com a política, emerge a promessa de uma redefinição do sistema financeiro de acordo com a matriz de valores humanos. Graças a moedas digitais que devem ser suficientemente descentralizadas para garantir o escrutínio democrático dos valores que as regem, será possível tornar o mundo mais justo e pacífico. Para tal, urge transitar para sistemas monetários éticos e inclusivos, pelo que os dirigentes políticos devem agir em vez de reagir, explorando vigorosamente o potencial tecnológico para criar horizontes de paz e sustentabilidade.