Na primeira parte, vimos que as novas moedas digitais podem refletir os princípios e valores de dois sistemas políticos muito diferentes. Como era de esperar, alguns regimes autoritários já centralizaram as suas. Quanto ao mundo livre, o futuro do “dinheiro inteligente” está ainda em aberto: Coexistirão as criptomoedas em livre concorrência com as Moedas Digitais dos Bancos Centrais (CBDC), ou todas as moedas digitais descentralizadas serão “canceladas” com recurso à desinformação e acabarão por ser proibidas? Para vislumbrar as implicações da presente evolução do dinheiro, devemos perceber que as moedas digitais têm valências muito diferentes das tradicionais.

Bitcoin: O símbolo da resistência financeira nas regiões em crise

Mais do que uma moeda digital, a criptomoeda Bitcoin é o símbolo pioneiro de resistência contra sistemas financeiros falidos, centralizados e opressivos. Em países como a Venezuela, com a sua inflação galopante, ou a Argentina, com os seus repetidos controlos de capital, Bitcoin é sinónimo de “salva-vidas” para muitos. Estes e outros exemplos podem constituir o prenúncio de uma transformação global onde mais países procurarão refúgio no emergente universo das criptomoedas.

Ethereum: Contratos inteligentes e reinvenção das trocas na era digital

No sistema de blockchain “Ethereum”, já existem milhares de criptomoedas e contratos inteligentes que facilitam sistemas monetários programáveis — redes onde as regras financeiras são codificadas e executadas automaticamente de acordo com as condições estipuladas pela lógica do contrato estabelecido entre as partes sem intermediários. A maior parte das criptomoedas até hoje criadas têm pouco ou nenhum interesse humano (muitas delas visam a mera especulação) e extinguem-se naturalmente no mercado. No entanto, surgem outros projetos válidos e meritórias graças à criatividade e ao engenho humano. Numa rede blockchain, todas as transações e regras são registadas de forma transparente e podem ser verificadas por qualquer pessoa. Por exemplo, na plataforma de doações “Giveth”, os doadores escolhem projetos específicos, obtendo a garantia de monitorizar o destino do dinheiro doado. Tal como se rastreia uma encomenda postal, esses indivíduos beneméritos podem seguir o rasto das suas doações, em tempo real, e garantir que elas chegam exatamente onde é pretendido, sem riscos de desvios ou taxas obscuras.

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DAOs: Democracia participativa e ação coletiva na era digital

Outro exemplo de sistemas financeiros inteligentes são as DAOs (Organizações Autónomas Descentralizadas), comunidades governadas por moedas digitais e “tokens” usados como votos. Considere o “MolochDAO”: não se trata de um mero fundo financeiro; é um espaço cuja gestão conta com a voz de cada membro, estando esta a apenas um voto de distância. Estas “vozes” ou votos não são meramente simbólicos; são moedas digitais que incorporam e veiculam vontade política.

Por outras palavras, além de terem valor financeiro, as moedas digitais também pesam na deliberação coletiva. Quando os membros de uma DAO participam na votação de propostas dentro do ecossistema Ethereum, conferem às suas moedas digitais uma função que transcende a mera negociação ou consumo. Assim, o dinheiro adquire um papel dinâmico e prático: para além de consistir em unidades de conta ou meios de troca (tendo valor de troca), também se torna um instrumento para expressar opiniões em deliberações coletivas (tendo valor de uso). Isto é o dinheiro a tornar-se inteligente e a realizar diretamente a vontade dos seus detentores, permitindo-lhes influenciar ativamente as decisões da comunidade. Trata-se de um novo quadro político-económico que desafia o entendimento tradicional da democracia, permitindo que esta evolua de representativa para participativa, com cada indivíduo a ganhar capacidade e a obter incentivo para intervir nas decisões que orientam a ação coletiva.

Escolhas monetárias e liberdade

É aqui que a nossa reflexão se torna mais urgente, pois a criação de um dinheiro inteligente traz consigo desafios políticos significativos. Naturalmente, a escolha das moedas digitais com as quais as pessoas preferem operar será proibida em regimes autoritários, cuja população terá moedas digitais centralizadas mais parecidas com ferramentas de vigilância e controle do que com livres meios de troca. Em contraste, os ideais das sociedades democráticas alinham-se perfeitamente com a existência de um vasto universo de criptomoedas em livre concorrência, na sua maioria emitidas pela sociedade civil; como a liberdade alimenta a criatividade, as moedas digitais descentralizadas trazem consigo o elevado potencial de inovação e desenvolvimento desde sempre associado à realização de trocas sem constrangimentos. Portanto, os líderes políticos devem reconhecer a importância da liberdade de escolha, evitando a adoção exclusiva de estruturas financeiras e sistemas monetários centralizados. A via da centralização monetária não apenas deixou de ser a solução mais segura, pois colocar os ovos todos no mesmo cesto (ou “single-point-of-failure”) é oferecer o ouro ao bandido em tempos de inteligência artificial, como, também, constitui um caminho demasiado estreito para a inovação e intoleravelmemte escorregadio para a privacidade e a liberdade dos cidadãos na era digital.

Conclusão

A inteligência artificial e as moedas digitais devem ser um marco de progresso na história da humanidade. O dinheiro inteligente do mundo livre deve ser programado de forma transparente e ética para fortalecer a democracia participativa e proteger a liberdade. Em vez de deixarmos que as informações sobre os nossos dados pessoais e transações sejam centralizadas e acumuladas pela inteligência adstrita aos centros do poder, devemos usar essas informações para aumentar a inteligência coletiva das nossas próprias comunidades. Para o conseguirmos, urge reconhecer que as moedas digitais colocam o poder do futuro ao alcance das nossas próprias mãos, mais precisamente nas nossas carteiras digitais.