No atual sistema financeiro, governos e bancos centrais tiram um coelho da cartola sempre que imprimem uma nota de €100 gastando menos de um cêntimo. Estes ganhos com a emissão de moeda chamam-se rendimentos de senhoriagem, e são hoje tão altos que fariam corar de inveja (ou vergonha alheia) reis e imperadores. Numa alquimia financeira refinada ao lume da inflação, evapora-se o poder de compra enquanto as chamas dos juros consomem tudo e mais alguma coisa. Aponta-se o dedo a políticas fiscais ou falhas de mercado (quando não se culpam até os próprios cidadãos), mas a raiz do problema está na estrutura do sistema de incentivos económicos que circula nas nossas mãos, pois há “moedas na manga” que vão subtraindo o valor dos bolsos dos cidadãos para desgraça de muitas famílias.

A essência do dinheiro

Nas tribos e pequenas comunidades antigas, o “dinheiro” baseava-se na memória das pessoas. Praticamente todos sabiam a quem deviam e quem lhes devia. Antes de existir a moeda já existia comércio, enganando-se os que imaginam tempos de trocas defeituosas ou incompletas por esta ainda não existir. Ninguém tinha de dividir galinhas para as trocar por alfaces, nem era preciso recorrer a terceiros para fazer os trocos. A noção da imprescindibilidade de moedas com valor intrínseco para acertar as contas pode dar jeito a intermediários financeiros, mas está errada.

“Se um aldeão precisasse de um porco para um banquete, poderia obtê-lo de outro aldeão em troca de quatro potes de barro, ou de um aldeão diferente por dez pares de sapatos. Estar constantemente a fazer cálculos mentais para determinar o melhor valor para um porco, ou qualquer outra coisa que estivesse a tentar adquirir, é demorado. Assim, o dinheiro é “criado”. O problema com esta história é que simplesmente não é verdadeira. Na realidade, estes aldeões conhecem-se uns aos outros e, em vez de trocar dez pares de sapatos por um porco, o aldeão que fornece o porco simplesmente toma nota da contribuição e de que o seu conterrâneo lhe deve algo de valor comparável. Isto é o mesmo que crédito, e os registos arqueológicos revelam que sistemas de crédito deste tipo antecederam a invenção da moeda em milhares de anos.” (Cryptocurrency and the State: An Unholy Alliance)

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Contrariamente à ideia popularizada em livros de economia, o dinheiro não surgiu naturalmente para assegurar a coincidência de desejos entre as partes, pois, mesmo antes da invenção da moeda, já as transações humanas eram realizadas com o aval do “dinheiro” paulatinamente depositado nas mentes das pessoas. Sim, enquanto a vida económica decorria lentamente nos pequenos lugares e vilarejos onde todos se conheciam, saldos “monetários” diligentemente atualizados faziam as boas contas e os bons amigos.

A Lição das Ilhas Yap

Com o tempo e a expansão das comunidades, claro que a memória humana passou a não conseguir albergar o histórico de todas as transações realizadas, tendo surgido a necessidade de sistemas mais conspícuos e tangíveis. O dinheiro das ilhas Yap é exemplo disto e ilustra bem a natureza do dinheiro: nestas ilhas do Pacífico Sul, grandes discos de pedra com um orifício central (alguns com várias toneladas), chamados fei ou rai, eram usados como moedas. Obviamente, sendo tão pesadas, estas pedras raramente eram deslocados. Em vez disso, a sua propriedade era registada oralmente (ou fazendo nelas pequenos entalhes), sendo as transações dos nativos de Yap alicerçadas na confiança comunitária e no reconhecimento coletivo da propriedade destas moedas. O sistema monetário das Ilhas Yap vigorou durante séculos, tendo sido louvado por destacados economistas como John Maynard Keynes e Milton Friedman. Eles perceberam que o dinheiro não tem de ser visto como uma mercadoria ou ter valor intrínseco, pois o que realmente conta num sistema monetário não é a forma ou o conteúdo das suas moedas, mas, sim, a confiança que ele representa enquanto sistema de créditos e compensações.

O renascimento do dinheiro

Graças ao rigor matemático da criptografia e à evolução digital, é hoje tecnicamente possível “quebrar o feitiço” e recuperar a genuína essência do dinheiro. Tal como nas moedas de Yap, nas criptomoedas também não é o valor intrínseco que conta (elas são virtuais e este valor é nulo), podendo a valia do dinheiro deixar de ser exclusivamente determinada por terceiros. Ao relembrar as lições do passado e adotar as inovações do presente, temos a chance de construir um sistema financeiro mais resiliente e justo. Um sistema onde o dinheiro possa ser das pessoas e novamente transparente, promovendo a confiança necessária para reestabelecer laços verdadeiramente humanos, em vez de constituir um sistema de incentivos unidimensional cego e incapaz de distinguir até a paz da guerra. Assim, mesmo com a “realpolitik” a refrear o otimismo, assiste-se à tímida criação de sistemas digitais onde é possível realizar transações transparentes e seguras sem intermediários. A blockchain é a espinha dorsal destes sistemas monetários emergentes, e a Inteligência Artificial perfila-se como o respetivo cérebro, sendo estas duas tecnologias capazes de redefinir completamente os limites do possível e voltarem a basear o dinheiro na memória coletiva, desta vez abrangendo toda a aldeia global.