Domingo, 8 de Janeiro: milhares de populares, protestando contra o que consideram a eleição fraudulenta de Lula da Silva, concentram-se em Brasília, na Praça dos Três Poderes. Nas horas seguintes, vão invadir e vandalizar as instalações do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto.

Já na noite de sexta-feira, 6 de Janeiro, se tinham registado, em São Paulo, actos de protesto, interrompendo os acessos ao Aeroporto de Congonhas. Perante esta agitação e perante numerosos indícios de que, em Brasília, poderia haver graves perturbações da ordem pública, o novo ministro da Justiça e Segurança Pública contactara os directores da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal para evitar a ocorrência daquilo que qualificava como previsíveis “actos antidemocráticos que podiam configurar crimes federais” de “pequenos grupos extremistas”. Para impedir estas eventuais acções violentas de “pequenos grupos extremistas” que não podiam “mandar no Brasil”, o Ministro preconizou e autorizou o uso da Força Nacional, uma unidade especial, criada em 2004 e dependente da SENASP – órgão sob a sua tutela. A força, às ordens do poder central, é constituída por polícias militares e civis e por peritos, e destina-se a actuar em crises de segurança pública. Segundo os media brasileiros, o Ministro pôs esta força em alerta em Brasília, para que as centenas de homens que a constituem estivessem prontos a intervir.

Perfil de um democrata

O Ministro da Justiça e Segurança Pública, desde 1 de Janeiro de 2023, é Flávio Dino de Castro e Costa, conhecido por Flávio Dino. Flávio Dino, de 54 anos, é natural de São Luís do Maranhão, onde foi dirigente estudantil, tendo-se licenciado em Direito na Universidade Federal do Maranhão, onde também leccionou.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em 1989, foi um dos dirigentes juvenis da campanha presidencial de Lula. Foi Juiz Federal no Maranhão e Secretário Geral do Conselho Nacional de Justiça. Em 2015, foi eleito Governador do Maranhão, cargo que exerceu até 2022.

Em 2006 renunciara à magistratura e filiara-se no Partido Comunista do Brasil (PC do B). O PC do B foi fundado em 1962 por dissidentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) contrários à destalinização iniciada por Kruschev e adoptada pelo PCB. O novo partido, que nos anos 60 começou por se identificar como estalinista, tornou-se depois maoista, abrindo relações com o Partido Comunista da China.

Foi o PC do B que, durante o regime militar, na volta dos anos 60 para a década de 70, criou a guerrilha da Araguaia, na região amazónica. Eram algumas dezenas de militantes e foram combatidos pelo Exército. Os seus chefes eram José Amazonas, Ângelo Arroyo, Maurício Grabois e Elza Monnerat (a dirigente do Comité Central do PC do B que, nos anos de Getúlio Vargas, escalara o Morro dos Dois Irmãos, perto do Rio, para pintar ali o nome de José Estaline).

A guerrilha foi vencida e, na transição, o PC do B acabou por integrar-se na normalidade democrática. Foi neste partido que, em 2006, se inscreveu Flávio Dino. Mas em Junho de 2021, depois de 15 anos de militância, anunciou a sua saída nas redes sociais, agradecendo ao PC do B “a acolhida fraterna”, mencionando “diferenças de estratégia e táctica”, e não de princípios e fins, como razões do abandono, e reconhecendo “o papel histórico do Partido na defesa de um novo projecto nacional de desenvolvimento para o Brasil”.

Este anúncio foi depois ratificado numa carta à “Companheira Presidenta” Luciana dos Santos, que terminava assim:

“Acredito que uma grande Frente da Esperança será um vector decisivo para um novo ciclo de conquistas sociais para o Brasil. As bandeiras da Igualdade e da Liberdade, sínteses das melhores utopias e projectos, serão erguidas cada vez mais alto. E venceremos. Abraços fraternos.”

Foi só depois dos “abraços fraternos” aos correligionários do PC do B que Flávio Dino passou para o Partido Socialista Brasileiro, um partido fundado na transição democrática que tem como símbolo uma simpática pomba da Paz. O Partido Socialista, com mais de 600 000 filiados, é o 9º do Brasil, e era, para Flávio Dino, que na juventude já andara pelo PT de Lula, uma etiqueta mais adequada para seguir em frente.

Terá sido por amor à paz e à pomba da paz socialista que o Ministro se esqueceu de mandar avançar a Força Nacional? Teria mudado de ideias desde que, na véspera, mobilizara as suas centenas de agentes de elite para impedir os “bolsonaristas da ultra-direita” de assaltar e saquear o Supremo Tribunal e o Congresso? Congresso esse com uma maioria de direita que pode dificultar muito as tentações mais radicais do Executivo Lula. E as campanhas populares para levar à intervenção militar, ainda que impressionantes, não costumam ser eficazes. Os militares não intervêm assim…

As Américas ao rubro

Com a eleição de Lula da Silva no Brasil, praticamente todos os países importantes da América Latina – México, Argentina, Chile, Colômbia –, bem como o Peru, a Bolívia e as Honduras, passaram a ter governos de esquerda mais ou menos populista, mais ou menos radical. E a estes podemos juntar os abertamente ditatoriais e comunistas Cuba, Venezuela e Nicarágua. Quer isto dizer que os países com as maiores populações e as maiores economias do subcontinente estão à esquerda.

Alguns dizem que, dada a ineficácia ou incapacidade de os governos lidarem com os problemas estruturais e sociais da região, o descontentamento leva a uma espécie de alternância, em que direita e esquerda se sucedem, porque os descontentes, que são a maioria, votam sempre contra o que está.

A isto talvez só escape, como excepção, o Uruguai, que desde 1985 tem uma circulação pacífica de poder, mantém um Estado social modelar e vê a economia crescer. Mas o Uruguai tem 3,5 milhões de habitantes e uma produção-exportação de base agrícola e agroindustrial.

Estas esquerdas não estão em total sintonia, embora tenham raízes ideológicas próximas. Dividem-nas os métodos e a práctica – o colombiano Petro chamou ditador ao venuzuelano Maduro e o chileno Gabriel Boric não hesitou em dizer que a experiência chavista-madurista da Venezuela tinha falhado. Em resposta, Maduro referiu-se a uma “esquerda cobarde”, visando Boric e outros legalistas. Boric tentou referendar recentemente uma Constituição woke, mas perdeu por larga margem.

Além de uma retórica utópica, radical e populista, ao modo do século passado, estes regimes – os que mantêm as instituições democráticas a funcionar – introduziram os temas da Nova Esquerda, desde o zelo ambiental, às políticas de género e alguma agenda do wokismo anglo-saxónico. Mas nenhum, à excepção das ditaduras cubana, venezuelana e nicaraguense, se tem empenhado contra a economia do mercado.

E também aí há divisões, por exemplo, em matéria ambiental: o chileno Boric e o colombiano Petro são ambientalistas firmemente empenhados na “descarbonização”, enquanto Lula, Lopez Obrador e Maduro insistem na continuidade das explorações do petróleo e gás, essenciais para a economia dos seus países.

Com a vitória no Brasil, uma grande mancha vermelha cobre o subcontinente americano. E o Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes, metade da população do Subcontinente, é a potência dominante da América do Sul.

Foi aqui que, numa eleição renhida, Lula da Silva triunfou em Outubro, graças à votação maciça nos Estados do chamado Nordeste, onde ganhou por 70 contra 30%. Os Estados mais desenvolvidos, mais instruídos, mais industrializados – São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais – votaram maioritariamente por Bolsonaro. E no Congresso, no Senado e na Câmara dos Deputados, há uma clara maioria de direita.

A invasão, o saque e as destruições dos indignados bolsonaristas – que não poderiam nunca beneficiar a oposição a Lula – caíram do céu para o novo poder. Talvez por isso, o aparelho de Segurança mobilizado por Flávio Dino não tenha recebido ordens para actuar. Isto foi notado até por um órgão de informação notoriamente progressista e hostil a Bolsonaro como o New York Times que, na edição de 9 de Janeiro, além de sublinhar a estranha abstenção das forças da ordem, que nem mesmo eventuais “cumplicidades” na Polícia Militar explicariam, confessa a sua perplexidade perante a ausência da Força Nacional, convocada na véspera, e da Guarda Presidencial do Planalto.

A ditadura dos juízes

No Estado de São Paulo, o jornalista José Roberto Guzzo, um respeitadíssimo colunista do Estadão, não se inibe de denunciar aquilo a que chama a “ditadura dos juízes”. Segundo Guzzo, nos últimos anos, os Juízes do Supremo Tribunal Federal, os chamados “Ministros”, vêm exercendo uma tutela sobre as instituições que, para o jornalista brasileiro, se configura como uma “ditadura do Poder Judiciário”.

O Supremo Tribunal Brasileiro tem algumas prerrogativas semelhantes às do Supremo Tribunal dos Estados Unidos: é o Tribunal de última ou terceira instância, os seus onze membros são indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado e, não sendo vitalícios, só se reformam aos 75 anos. Estes juízes nos últimos tempos têm vindo promover medidas executivas com efeitos directos e imediatos, usando e abusando da sua função de tutela da Constituição. No que é, segundo Guzzo, uma práctica anti-constitucional, o ministro Alexandre de Moraes tem também proibido de falar deputados federais, como Bia Kicis e Carla Zambelli, socorrendo-se ainda da pomposa Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação para policiar as redes sociais. Tudo isto – sempre segundo o artigo de Guzzo no Estadão – depois de terem os Juízes eliminado a lei, aprovada pelo Congresso Nacional, que obrigava os réus condenados em segunda instância a cumprirem pena de prisão. Graças a esta medida, Lula saiu da cadeia. Depois, anularam as acções penais contra o ex-presidente por razões processuais, incluindo a condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro – o que lhe limpou a ficha e permitiu a sua candidatura e vitória. Deste modo, conclui Guzzo, foram anuladas todas as condenações da Operação Lava Jato – “o único momento, em 500 anos de História, em que a Justiça mandou para a cadeia condenados por corrupção de primeira grandeza”.

Já antes do 8 de Janeiro, o governo Lula anunciara a criação de uma Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia (PNDD), aprovando a instituição no seu primeiro dia de presidência, pelo decreto 11.328. Entre outras funções, a PNDD tem o encargo de “representar a União, judicial e extrajudicialmente” na demanda e instrução, “para resposta e enfrentamento”, da “desinformação sobre políticas públicas”.

Entre Orwell e Tocqueville

Esta “resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas” serve, claramente, para abrir a porta à censura prévia e dissuadir a crítica aos poderes instalados. De resto, o ministro Jorge Messias, titular da chefia da Advocacia Geral da União, declarou como objectivo da nova Procuradoria para a Defesa da Democracia – “contribuir com os esforços da democracia defensiva e promover pronta resposta a medidas de desinformação e atentados à eficácia das políticas públicas”.

Talvez para completar estes esforços em prol da Democracia, o ministro Flávio Lino tenha criado no Ministério da Justiça uma plataforma, denuncia@mj.gov.br , para acolher as denúncias dos cidadãos vigilantes – presumimos que anónimas – sobre os terroristas do 8 de Janeiro. Até à manhã de segunda-feira, 9 de Janeiro, já tinham sido recebidas três mil. “Qualquer informação ou pista é bem vinda”, pode ler-se na plataforma.

Quem conheça a história das revoluções da Esquerda – da Revolução Francesa à Soviética, da Espanha em 36 ao PREC do Portugal dos “brandos costumes” – não demorará muito a estabelecer paralelos e a tirar ilações e consequências.

Os manifestantes que invadiram e saquearam as sedes dos Três Poderes em Brasília, com os titulares dos Três Poderes fora da capital federal e com os defensores convocados nas vésperas estranhamente ausentes, estão por enquanto detidos em instituições prisionais provisórias. Também para aí foram mais de mil dos acampados em Brasília.

Os invasores, ao soltarem os seus instintos predadores num acto impensado ou manifestamente mal-pensado – tanto mais que teriam certamente presentes os acontecimentos norte-americanos depois da derrota de Trump – acabaram por ser, objectivamente, os “inocentes úteis” e os detonadores do discreto estado de excepção que estava a ser montado e que precisava deles para funcionar.

Estas disposições preventivas, com algum cheiro orwelliano, parecem enquadrar-se no despotismo descrito por Tocqueville; um despotismo que tem, do lado dos dominados, “uma multidão inumerável de homens parecidos e iguais que rodam sem parar à volta de si mesmos para disfrutar dos pequenos e vulgares prazeres com que enchem a alma”; e do lado dos dominadores, “um poder imenso e tutelar que se ocupa de garantir-lhes os prazeres e velar sobre a sua sorte. Um poder que é absoluto, detalhado, regular, previdente e doce”.

Tocqueville, em A Democracia na América, compara este poder ao “poder paternal”, com a diferença que, enquanto o poder paternal preparava os homens para a idade adulta, o novo poder pretende mantê-los na infância, contentes e felizes, mas sempre sob tutela. Sob esta tutela, os denunciantes eram sempre considerados bons cidadãos – exemplares, mesmo.

Será que o Brasil do denuncia@mj.gov.br, o Brasil desta esquerda corrompida, também básica e maniqueísta, vai vencer e prevalecer, aproveitando o direitismo primário, instintual e irreflectido do inimigo – para o qual a Direita tem vindo a ser empurrada, de dentro e de fora?