A primeira e óbvia conclusão a tirar da segunda volta da eleição presidencial brasileira é que o Brasil é um país dividido. E dividido por várias linhas e razões.

Dividido a meio: 50,87% para o vencedor, Lula, com 60 milhões de votos, e 49,13% para o vencido, Bolsonaro, com 58 milhões de votos. Isto depois de os institutos de sondagens terem dado Lula por eleito à primeira volta com grande folga e o darem depois como vencedor à segunda volta com uma margem que oscilaria entre 6% e 2%.

Mas não é só por aqui que passa a divisão. Enquanto as presidenciais deram a vitória tangencial a Lula, as eleições para o Congresso foram claramente ganhas pela Direita, com o partido de Bolsonaro em primeiro lugar. E como foi também a Direita que ganhou a maioria dos governos estaduais, a Esquerda, embora tenha progredido no Congresso, tirando lugares ao centro, ficou ali minoritária. Assim, várias publicações têm vindo a classificar este Congresso como “o mais à direita da História do Brasil”, em democracia.

O Nordeste contra o Resto

A divisão no Brasil é também geoeconómica e geopolítica. O mapa da votação por regiões e Estados é esclarecedor: no Nordeste, Lula vence Bolsonaro com 70% dos votos contra 30%, mas, no Norte, Bolsonaro consegue 51% contra os 49% de Lula e vence-o também no Sul, com 62% contra 38%, bem como no Sudeste (54% contra 46%) e no Centro Oeste (60% contra 40%). Assim, o Centro e o Sul do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, os Estados mais ricos, desenvolvidos e industrializados e mais produtivos – votaram Bolsonaro. Em Minas Gerais, houve empate. O Nordeste, antiga terra de coronéis e peões, zona dependente dos subsídios e ajudas estatais que corresponde, economicamente, a 15% do PIB brasileiro, votou Lula. E como sublinha a Limes, a revista italiana de geopolítica, esta divisão territorial tem vindo a verificar-se em todas as eleições nos últimos vinte anos, estendendo-se, sempre segundo a Limes, a grupos ideológicos e sócio-profissionais:

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“Além da comunidade evangélica, os empresários, os profissionais liberais, os agricultores e os membros das forças de segurança votaram em massa em Bolsonaro. Professores, jornalistas, intelectuais, desempregados, população carcerária e favelados votaram por Lula.”

Estes dois Brasis não vão ser fáceis de reconciliar pelo Presidente eleito Lula da Silva – como o não seriam por Bolsonaro, caso tivesse vencido a eleição.

De qualquer forma, levando em conta a hostilidade e o discurso de ódio a que foi sujeito o Presidente vencido, o seu governo e o seu mandato, é surpreendente o resultado de Bolsonaro, o bloco de apoio que manteve e o voto popular que resistiu a semelhante pressão.

Os nossos media domésticos limitaram-se a fazer o que quase sempre fazem, na ânsia de pertenceram à comunidade informativa internacional liberal chic ou radical chic: uma cópia servil zelosamente exagerada até à caricatura da autoproclamada imprensa de referência, já de si com proverbiais tiques de  “imparcialidade jornalística”.

O coro da “imprensa de referência”

No tempo dos “outros senhores”, na “longa noite fascista”, com o controle censório da televisão, da rádio e da imprensa, o discurso mediático era uniforme. A proeza dos media da nossa democracia – pivots, jornalistas, comentadores, “especialistas” – é a de, sendo tantos e tão livres, conseguirem dizer, com pequenas variantes, a mesma coisa sobre quase tudo o que é importante.

Por isso, quanto às eleições brasileiras, o discurso foi o do costume. Há sempre uns “bons” e uns “maus”, que a comunicação social responsável e livre sabe já quem são. Os “bons” são sempre fantásticos, como Biden, os “maus” são sempre péssimos, como o Trump. Quando o “bom” tem, apesar de tudo, o currículo do Lula, disfarça-se e diz-se mais mal do “mau”, de Bolsonaro.

Se não, veja-se a imprensa de referência, os grandes diários da Euro-América: para o The Guardian, “o presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro” enfrentava “o seu rival esquerdista Lula da Silva”. Para o mesmo The Guardian, os grandes apoiantes de Bolsonaro eram “as elites brancas endinheiradas e a comunidade evangélica”. Para o El País, o Brasil, “o futuro do mundo”, voltava “à cena internacional com Lula, e reforçava a democracia frente às derivas iliberais”. Também aí, “el ultra-derechista Jair Bolsonaro” desafiava “el esquerdista” Lula da Silva. Bolsonaro era, também para o diário espanhol “o culpado de centenas de milhares de mortes, graças a uma campanha de desprestígio da Ciência e da Medicina e de negacionismo das máscaras e vacinas durante a pandemia do Covid-19”. Já Lula era um modelo de “moderação, pragmatismo e espírito de concórdia”. Nem uma palavra sobre o governo Lula, com o ministro José Dirceu e os provados e comprovados subornos, biliões roubados e negócios sujos com grandes empresas públicas e privadas brasileiras com ramificações em Portugal. E que ramificações. Mas disso, nem uma linha.

Para o New York Times, Bolsonaro era réu dos 700 000 mortos por Covid e o grande destruidor da floresta amazónica.

O Le Monde, previsivelmente, pintava as eleições como o grande duelo entre “l’icone de la gauche” e “le président de l’extrême droite”; e o La Repubblica, italiano, puxava para título “Brasile: la notte della liberazione” (como se a presidência de Bolsonaro fosse uma ditadura ou uma ocupação estrangeira), congratulando-se com o regresso ao poder do “ex-metalomecânico idealista e pragmático” Lula da Silva. Sobre o mecanismo de corrupção do PT, os ministros do PT e os milhões de Reais que receberam, anos a fio, das grandes construtoras brasileiras, nada.

A vitória de Lula teve, ao menos, o mérito de unir dois inimigos figadais e assanhados – Joe Biden e Vladimir Putin. Biden dirigiu felicitações a Lula pela sua vitória “na sequência de eleições livres, justas e credíveis”, mostrando-se ansioso por trabalhar com Lula “para prosseguir a colaboração entre os nossos dois países”. E rivalizando em calor com Biden, Putin escreveu: “os resultados da eleição confirmaram a sua grande autoridade política”; “faremos esforços conjuntos para uma cooperação russo-brasileira em todos os domínios”.

A América do Sul toda à esquerda

Com a vitória de Lula, completa-se o domínio da esquerda radical na América do Sul, da Venezuela chavista ao Chile, onde o Presidente Gabriel Boric viu recentemente rejeitado em referendo popular um projecto constitucional alternativo.

A proposta constitucional de Boric, considerada uma das mais progressistas do mundo, tinha mais de uma centena de “direitos” e destinava-se a substituir a Constituição de 1980, do tempo de Augusto Pinochet. No entanto, o “Não” ganhou por uma votação expressiva – 62% contra 38% (facto que a comunicação social de referência, de lá e de cá, fez por esquecer).

A vaga esquerdista na América Latina acentuou-se entre 2018 e 2020 com as vitórias de candidatos da nova esquerda no México, na Argentina e na Bolívia; em 2021 o desfecho repetiu-se no Peru e nas Honduras; este ano foram três grandes países da América do Sul: o Chile, a Colômbia e o Brasil. Em quatro anos, da eleição de Andrés Lopéz Obrador no México à vitória tangencial de Lula, a vaga invadiu as seis maiores economias da América Latina – Brasil, México, Argentina, Chile, Colômbia e Peru –, agora governadas por presidentes de esquerda.

É uma esquerda com a nova agenda, desde o fim dos combustíveis fósseis ao direito pleno ao aborto. Se bem que a realidade possa corrigi-la (Boric viu a sua Constituição progressista derrotada e o peruano Castillo enfrenta uma baixa de popularidade, com 62% dos inquiridos a avaliarem negativamente o seu desempenho e 60% a considerarem-no corrupto), o índice de pobreza está a agravar-se e estas seis economias e os seus povos vão com toda a certeza passar um mau bocado.

A Direita na rua e nas urnas

O Brasil pós-eleitoral – que ameaçava grande tensão, com muitos partidários de Bolsonaro nas ruas a protestar contra o que consideram uma fraude lulista e os camionistas a bloquearem estradas – parece em vias de acalmar, depois de o Presidente ter dado início à transição e ter apelado aos seus partidários para desimpedirem o tráfego que prejudicava a economia e muitos cidadãos inocentes.

Nestas intervenções, Bolsonaro tem-se mostrado sereno e disciplinado, com ar de quem aprendeu a lição. Dada a proximidade dos resultados, a sua derrota (como a de Donald Trump) fica sobretudo a dever-se ao modo leviano e à retórica rude e depreciativa com que lidou com a Pandemia. Na campanha, a sua argumentação contra Lula centrou-se na corrupção do adversário e associados. Mas o que era um tema vivo e quente em 2018, com a investigação do Juiz Moro, com o processo Lava-Jato, com o desfile dos corruptos e dos seus cúmplices e delatores nos órgãos de informação a todas as horas, tinha já arrefecido. A operação de esquecimento e branqueamento já fora posta em marcha em nome do projecto principal de afastar Bolsonaro do poder; um projecto que reunia esquerdas fanáticas e direitas globalistas. Porque são o globalismo e o soberanismo que hoje dividem o mundo.

Mesmo assim, Bolsonaro e a Direita brasileira podem considerar-se em forma e em força, passada esta prova de fogo. Com a hostilidade geral dos media, dos comentadores, dos “especialistas” e dos observatórios (que aguardam ansiosos os generosos subsídios do Forum de São Paulo e afins), e estando “o “fascista Bolsonaro” a enfrentar um “homem de esquerda”, mas com muita abertura e apoio ao centro e até à direita da esquerda, é extraordinário que tenha tido tanto apoio – e não só de “deploráveis”.

Para muitos, o problema é que a Direita se afirma agora nas urnas e nas ruas contra uma Esquerda instalada nas burocracias do poder e da influência mediática. Deve ser por isso – como alguém escrevia aqui e bem – que os jornalistas, “especialistas” e comentadores tanto de agitam, alertando em coro para o “perigo fascista”, num despropósito de tal forma caricato que até do próprio “campo socialista” chegam denúncias.