A presença que a palavra confere àquilo que está ausente não é, evidentemente, nem densa nem genuína. O representante nunca chegará a ser o representado. Da coisa nomeada, o nome oferece-nos, quando muito, uma abreviatura, um esquisso, um fragmento. E isso apenas no caso de a interpretarmos correctamente, o que nem sempre se afigura fácil. Donde dever ser tratado com pinças aquele mágico poder de a palavra permitir que uma coisa esteja simultaneamente em dois remotíssimos lugares – aquele onde efetivamente está e aquele onde ela é referida. Porque o que temos da coisa, burilando o seu nome, é uma caricatura: o seu conceito.

O nascimento da sofística – essa pretensão de saber e ensinar tudo, qualquer coisa e o seu contrário – confrontou o assombro do pensamento grego com a aporia de, por intermédio das palavras, ser possível explicar o mundo e simultaneamente desvirtuá-lo.

Apenas os mais incautos poderão estranhar a familiaridade desse ultraje: dando corpo e voz a um perigosíssimo discurso que é simultaneamente uma paideia e uma política – o medonho broto de que derivam todas as pretensões totalitárias – o sofista passa a dirigir-se ao cidadão e não já ao homem e arranca intencionalmente pela primeira vez o conteúdo à forma. Fala de temas filosóficos, e parece uma sabedoria sem o ser. Se não tomarmos cautela, diz-nos Platão no Crátilo, se não desconfiarmos dessas palavras, procurando alcançar, contornando-as, a própria essência das coisas, os nomes convertem-se, às mãos desses estranhos homens cujo ser consiste em não ser, em máscaras e, em vez de tornarem as coisas presentes, ocultam-nas.

Permanece por isso ainda hoje antológica e imorredoira aquela metáfora – “picareta falante” – com que o génio de Vasco Pulido Valente definiu a matriz sofística de que Costa e seus pupilos são bisonhos epígonos: o ‘talento’, como tantas vezes foi descrito, de Guterres para jorrar opulentos simulacros de palavras cuja aparente articulação reflecte a ideia de uma genuína relação entre fácies circunspecta, preocupação social e palavras alijadas em sofrimento revelou-se o caldo Knorr com que a New Left sonhou refogar, com ademanes e cebola, o que ao tempo definira como o fim da História. E, muito embora o tal do Armagedão nunca tivesse chegado, os socialistas tinham descoberto, contudo, que uma barragem de impressivos caudais verbais, permitindo ocultar a essência das coisas, disfarçava também a sua própria irrelevância.

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Quando Galamba, insigne prosopopeia de uma bílis ambulante, decide conceder prerrogativa de púlpito a uma citação de Marcelo, fá-lo absolutamente consciente de que naquela câmara, como em qualquer Casa de Pasto, conquista o direito a integrar sem vergonha o rol dos fiados quem, com pilhéria desbragada, causar entre os beberrazes o maior alvoroço, arrastamento de bancos e espalhamento de serradura. E, no que a altercações da ordem pública diz respeito, Galamba há muito levou a palma: ele sabe que o seu único trunfo é o ruído da sua existência e que, mantendo feliz o dono do tasco, talvez lhe calhe em sorte um banco de pé alto junto do balcão, encostado ao pipo do melhor tinto, e até, quem sabe, um daqueles gulosos pires de pezinhos de coentrada que a patroa marinou de véspera. No que à discussão orçamental diz respeito, Galamba atribui às palavras de Marcelo idêntico proveito que à enxertia beirã: demonstrar que das palavras lhe interessa apenas a casca e que cada trago, vinagrado e humilhante, do pratinho de lentilhas da sua ‘demissão’ fermenta agora nas pálidas larachas em que associa a figura “de sua Excelência o Presidente da República” à polissemia de enxerto.

Do mesmo modo, quando Brilhante Dias – cintilante de tão lambido, estalando nas bragas novas que o chefe lhe ofereceu pelo aniversário da agremiação – exige, em bicos de pés, que a oposição “fale sério” na discussão sobre o Orçamento, torna-se pleonasmo de si mesmo e, cevado a rancho e ressentimento, bolsa entimemas naquele esgar de cinismo e autossatisfação que tanto lhe permite dissertar sobre o Jogo da Macaca, como a migração dos gnus, a digestão dos percevejos e até, imagine-se, caso lho ordene o dono do tasco, seriedade. Quando diante de alguém que rivaliza, em argúcia e brilhantismo, com um poste de iluminação pública, não estranhemos que, em chiliques de volúpia, ele tente impressionar o senhor do interruptor com o número de traças que foi capaz de atrair durante a noite.

A partir dos sofistas, a graça primordial da palavra, o seu sortilégio, tornou-se a sua desgraça, aquilo para que, queiramos ou não, a linguagem sempre se prestará – ilusão, farsa e ostentação. Cada um de nós não tem da maioria das coisas mais que as suas máscaras nominais – brisas, sopros, alentos que nos chegam da atmosfera social que respiramos e que, inspirando, tornamos nossas. Considerar estes arremedos de arrazoado verdadeiros discursos ofende a primordial dignidade da palavra e infecta o arejado e salubre espaço público.

O bufão presume que é precisamente por termos os nomes das coisas que podemos falar delas e sobre elas. Como se isso fosse possível! Caso se desejasse, verdadeiramente, “falar sério”, a primeira coisa a fazer seria calar-se. O verdadeiro saber é mudez, manancial que apenas na solidão pulsa.

No entretanto, limpando à fraldilha o unto das mãos e entalando o escarrador na porta, Costa berra para cave que, quando mudarem o tonel, lhe guardem as borras – bem enxaguadas, passarão por água-pé por altura do S. Martinho.