Na aproximação do nongentésimo aniversário da formação de Portugal, convém lembrar que, a par das ações bélicas, religiosas e diplomáticas de antanho, emergiram manifestações culturais que em tudo refletiam as características do povo e o seu modus vivendi. No caso da literatura, surgem umas pequenas composições, de tradição manifestamente oral, propícias a acompanhar atividades domésticas e rurais, onde é exibida uma liberdade feminina que deixa antever um código de relações humanas bem mais flexível do que o que, na altura, seria espectável.

As Cantigas de Amigo

São várias as teses sobre as origens desta lírica peninsular. Se, durante muito tempo, se especulou, de forma pouco consensual, sobre a sua génese, o aparecimento dos Cancioneiros da Vaticana (1840) e da Biblioteca Nacional (1880) veio demonstrar a existência de uma poética, singela, feminina, reflexo de uma hierarquização feudal, comprometida com o real quotidiano, atento à guerra santa, e com manifestos sinais de indigenato, cujo termo a quo é o célebre texto atribuído a D. Sancho I, “Ay eu, coitada, como uyuo” (Nota do Editor: Ai eu, coitada como vivo), datado de 1199(?). Não se tratando de um epifenómeno, outrossim de manifestações populares e genuínas continuadas, perduraram no tempo e, mesmo se mescladas com as moaxás árabes ou com as cantigas de amor provençais, mantiveram uma identidade própria. Deve-se ao século XIX, e à atração dos românticos pela Idade Média, o seu estudo e divulgação. Contudo, este interesse não se quedou por aí, antes fez a ponte com os séculos XX e XXI, sendo comum, na produção portuguesa, ecos desta poética em inúmeros poetas e cantores de que destaco, e. g., Zeca Afonso, Ary dos Santos, Natália Correia, Fiama Hasse Pais Brandão, Manuel Alegre ou Manuel Sobral Torres.

Na chamada lírica peninsular, onde, como referido, também se vestigiam poéticas pré-existentes, se inserem as cantigas de amigo galaico-portuguesas, protagonizadas por uma donzela simples, espontânea, apaixonada, cândida e saudosa que procura o encontro com o amigo, tomando, na sua ausência, a mãe, a irmã ou a natureza por confidentes da sua coita de amor. Através destes cantares, torna-se fácil entrever os variados estados psicológicos da velida no decorrer da intriga sentimental: o seu primeiro encontro com o amigo; os tímidos oaristos; as promessas de amor; os arrufos; o ciúme; a saudade; o receio da partida; a alegria do regresso. Assim se tornam, estas composições, em excelente estudo da psicologia da mulher medieval, deixando antever o tal código de relações humanas ainda hoje parcialmente vigente.

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Nelas, a única personagem ativa e sujeito falante é a mulher, não havendo qualquer resposta às suas súplicas por parte do destinatário – o amigo assazmente referido, mas sempre ausente – salvo em situações pontuais de manifesta influência provençal. A angústia face à sua ausência – muitas vezes no fossado – é mencionada de forma arrebatada, preocupando-se a fremosa com o seu bem-estar, e temendo a morte, também por amor, de que dá conta o já citado termo a quo atribuído a D. Sancho I.

A tristeza e a saudade – marca tão portuguesa – manifestam-se através de perguntas feitas às confidentes, chegando a meninha a anunciar a própria morte decorrente da sua coita: “Ondas do mar de Vigo / se uistes meu amigo! / e ay Deus se uerrá cedo!” (N.E.: Ondas do Mar de Vigo / se vistes meu amigo! / e ai Deus se virá cedo!) (Martin Codax) ou “Vy eu, mha madr’, andar / as barcas eno mar, / e moyro-me d’amor!” (N.E.: Vi eu, minha mãe, andar / as barcas no mar, / e morro-me de amor!) (Nuno Fernandez Tornedol). Tais situações de ausência provocam o ciúme da velida que, insegura, antevê a presença de uma rival e, ontem como hoje, sofre sem o ocultar, antes o confidenciando: “Amiga, do meu amigo / [o]í eu oie recado; / que é uiu’ e namorado / d’outra dona bem uos digo, / mays iur’ a Deus que quisera / oyr ante que mort’ era.” (N.E.: Amiga, do meu amigo / hoje eu ouvi um recado; / que está vivo e apaixonado /, por outra senhora bem vos digo / mas juro a Deus que quisera / antes ouvir que morrera.) (Sancho Sanchez), ou desabafando num monólogo magoado: “Eu nunca dórmho nada, / cuidãd’ en meu amigo; / el que tam muyto tarda, / se outr’ amor á sigo, / ergo o meu, querria / morrer oi’ este dia.” (N.E.: Eu nunca durmo nada, / pensando no meu amigo; / ele que demora tanto, / se tem outro amor, / ergo o meu, queria / morrer hoje mesmo.) (Joan Lopez d’ Ulhoa). O temperamento feminino mostra assim a sua fragilidade que pode, rapidamente, passar à ira e ao desprezo: “Ay madre, ben uos digo: / mentiu-mh o meu amigo: / sanhuda lh’ and’ eu.” (N.E.: Ai mãe, bem vos digo: / mentiu-me o meu amigo: / ando zangada com ele.) (Pero Garcia), ou segurança, autoconfiança e mesmo vaidade, assim se inferindo a versatilidade psicológica da donzela: “O meu amigo que me dizia / que nunca mays migo uiueria, / par Deus, donas, aqui é iá!” (N.E.: O meu amigo que me dizia / que nunca mais comigo viveria, / por Deus, donas, já aqui está!) (Pai Soarez).

A mulher, personagem central: da donzela ingénua à amante ardente

Durante muito tempo, defendeu-se que as cantigas de amigo eram postas na boca de uma donzela ingénua, e pura, que apenas convivia com o platonismo da afeição. Os estudos do século XIX, aos quais se deve muito do que se conhece sobre a Época Medieval, vieram demonstrar algo bem diferente. De facto, a par dessa timidez, surge, com frequência, a amiga desenvolta que aclara, através dos seus atos, o sentimento amoroso que, não sendo pecaminoso, é, no mínimo, erótico e provocador do desejo físico. Embora cauta e discreta, a sua paixão surge explicitamente envolta numa sensualidade implacável que não esconde o gozo físico: “Da noyte d’eyre poderam fazer / grandes tres noytes, segundo meu sem, / mays na d’oie mi ueo muyto bem, / ca ueo meu amigo, / e, ante que lh’ enuiassa dizer ren, / ueo a luz e foy logo comigo” (N.E.: A outra noite pareceu-me / três grandes noites,  / Mas na de hoje estou muito bem, porque chegou o meu amigo, / e antes de lhe enviar recado, / veio a luz e ficou comigo.) (Juião Bolseiro); ou implicitamente, ao exibir os seus dotes físicos, por vezes com alguma irreverência, em frente do amigo, tentando-o para que ele sinta necessidade de aproximação: “Nossos amigos todos lá hiran / por nos ueer, e andaremos nós, / bayland’ ant’ eles, fremosas em cós, / e nossas madres, poys que alá uan, / queymen candeas por nós e por ssy, / e nós, meninhas, baylaremos hy.” (N.E.: Nossos amigos todos lá irão / para nos ver, e andaremos nós, / bailando diante deles, formosas em cós, / e as nossas mães, pois que lá vão, / acendam velas por nós e por si, / e nós meninas balaremos aí.) (Pero Viviaez). Nesta Cantiga de Romaria, de que apenas transcrevi uma copla, a ben talhada vai mais longe: para além da atitude provocatória de dançar em cós (sem capa) frente ao amigo, engana a mãe, sua habitual confidente. Assim desaparece todo o seu sentimento religioso, recorrendo ao ludíbrio; de facto, a sua ida em peregrinação a San Simion, mais não é que pretexto para se exibir em frente do amigo, postergando, assim, a sua devoção religiosa.

Destarte, fica patente que, enquanto as irmãs e as amigas assumem sempre o claro papel de confidentes, a mãe, tendo também esse papel, configura de igual modo a censura que à donzela é devida pelo seu atrevimento, omitindo-lhe esta, por tal, alguns dos seus atos. Servindo-se do ombro materno para desabafar as suas mágoas, esconde-lhe os atos menos recatados chegando a recorrer à mentira. É assim que o cervo do monte surge em várias composições como causador dos atrasos da menina que o utiliza para se justificar perante a mãe: “Digades, filha, mnha filha uelida, / por que tardaste na fontana fria: / os amores ei. // […] // Tardei, mha madre, na fontana fria, / ceruos do monte uoluian a auga: / os amores ey. // […] // Mentes, mha filha, mentes por amigo, / nunca ui ceruo que uoluess’ o rrio” (N.E.: Diz, filha, minha filha linda, / porque demoraste na fonte fria: / tenho amores. // […] // Demorei, minha mãe, na fonte frio, cervos do monte toldavam a água: / tenho amores. // […] // Mentes, minha filha, mentes por causa do amigo, / nunca vi cervo que torvasse o rio.) (Pero Meogo).

O tema do corpo, está presente nestes cantares sendo frequente a donzela referir-se à sua elegância e beleza e insinuando pormenores íntimos em termos metafóricos de que dá conta uma bailia em que se alude à perda da virgindade: “Fostes, filha, eno baylar / e ronpeste hi o brial: // […] // que fezestes ao meu pesar;” (N.E.: Foste, filha, ao baile / e aí rompeste o vestido: // […] // custa-me que o tenhas feito;) (Pero Meogo).

Uma clara poética feminina

O que ficou dito, faz ganhar consistência a tese que defendo: havendo vestígios de poéticas pré-existentes como e. g. a mozárabe e a provençal, a autóctone é autónoma e verdadeiro paradigma do modus vivendi do povo que a gerou. Assim, é inegável a existência de uma poética feminina. A mulher mais ou menos experiente, mais ou menos cauta, mais ou menos expansiva dá voz e protagoniza uma poética de uma densidade psicológica versátil e multímoda que tipifica a mulher portuguesa, ainda nos dias de hoje, vivenciadora de sentimentos como a saudade, o ciúme e a revolta enquanto reações às adversidades amorosas sejam platónicas ou de uma cauta sensualidade. Em termos formais, surge a intriga amorosa dada de forma mais intensa do que extensa – composições muito curtas que tudo dizem, ainda que haja algumas mais longas, sobretudo as mais genuínas e primitivas; baseiam-se, contudo, em repetições – o paralelismo – sendo que toda a mensagem é fornecida nas duas primeiras coplas e no refrão, que se institui muitas vezes, corpus semântico. De forma subliminar há, nesta poética, a tentativa, ainda que tímida, de emancipação da mulher, inusual na época em que foi escrita.

No meio desta ancestralidade, escondem-se autênticos tratados da psicologia feminina, documentários de vida dos povos ligados ao mar, nos quais não será despiciendo continuar a refletir, porque – não é absurdo acreditar-se –, configuram fontes de desvendamentos sistematicamente atualizadores do passado que clarifica o presente.

Resultantes também de práticas intertextuais, as Cantigas de Amigo abrem ao teocentrismo medieval, às tarefas do quotidiano de uma sociedade rural em que a donzela implora a Deus o regresso do seu amigo, ausente no fossado, ou, porque de ingénua pouco tinha, lhe roga proteção para um encontro a sós; evoco os seus intensos diálogos com o mar tão cruzado com o destino deste nosso povo, e verifico, noutro registo, a inflexível estrutura das classes trovadorescas, tão decalcada no feudalismo vigente, bem como a vassalagem amorosa que o trovador, através da voz feminina, presta à donzela, sua suserana. Simplicidade linguística, formal, política, social e religiosa enformam as manifestações artísticas destes cantares medievais, retratando a permanência e continuidade dos primeiros passos de um povo que, refletindo nos 900 anos da sua existência, sabe que o passado dilucida o presente e se torna garante do futuro.