A Iniciativa Liberal pediu mais grafitis — chamou-lhes “arte urbana” — nos bairros da Gebalis. Aqueles que melancolicamente contactam com os círculos da baixa política, e assim foram iniciados na língua de pau engrolada naquelas grutas, sabem que a Gebalis é a empresa municipal inventada para gerir os bairros de habitação pública, os mais pobres de Lisboa. Em língua de gente, a Iniciativa Liberal pediu mais grafitis nos bairros onde moram pessoas que não conseguem escolher outro sítio onde morar. Para melhor convencer os pasmados, trouxe um PowerPoint com os melhores exemplos. Percebeu-se, pela apresentação, que a IL tem sobre este assunto todas as certezas. A prudência aconselha todas as dúvidas.
Uma dessas dúvidas resulta de saber que os vistosos murais que ali foram expostos não são da autoria de residentes. São de artistas reconhecidos e valorizados, alguns deles muito bem pagos, quando o que é corrente são desenhos de amadores e só por caridade se pode generalizar este qualificativo. Na cabeça do cidadão comum, por detrás de cada uma daquelas obras de “arte” está um rufia, ou um criminoso, ou o membro de um gangue; e nestas “galerias de arte” é má ideia passar ao lusco-fusco, ou sozinho; e devem instruir-se as senhoras e as crianças no sentido de evitar os percursos onde esta matulagem marcou o seu território, numa gestalt perfeita de letras volumosas e figuras sinistras. É isso que caracteriza o grafiti.
Já prevenindo os dedinhos sabichões, é bom esclarecer que aqui não falamos de grafiti no sentido técnico; Michelangelo não fez grafitis destes, nem Leonardo da Vinci, apesar de ambos terem pintado em paredes. Convém manter na conversa algum decoro. O grafiti, tal como hoje o entendemos, é um exercício de desafio às autoridades. E ainda que a esquerda queira domesticá-lo (com o consentimento da nossa querida “direita”), para se dar ares, para infantilmente se emancipar das correntes convencionais, e para aparentar uma falsa familiaridade com as vanguardas públicas, tudo o que consegue é perder prestígio e enfraquecer o poder. Um prodígio de estupidez.
Na ausência de argumentos racionais, ou políticos, ou artísticos, desce sobre nós a ardilosa diferença entre os grafitis e os “tags”, estes últimos, sim, passíveis de intolerância e perseguição. A Iniciativa Liberal não abdicou de puxar a si este expediente. Sucede que só muito raras vezes é possível estabelecer, com o rigor indispensável, onde acaba o “tag” e começa o grafiti propriamente dito. Sucede também que tanto faz: uns e outros, autores de grafitis ou de “tags”, deviam suportar no lombo com o pau inclemente do sistema de justiça, que a lei portuguesa já apetrechou.
Mas a dúvida mais sensível tem a ver com a estigmatização. Nos bairros onde o preço por metro quadrado é mais alto, onde moram as pessoas com mais rendimentos, aquelas que podem escolher morar ali ou mudar-se, não existe um padrão de grafitis nas empenas. Só acontece temporária ou excepcionalmente; plantaram um exemplo na Avenida de Roma, em Lisboa, que os governantes e os jornalistas chamam respeitosamente “mural”, pintado a partir de um quadro previamente conhecido e aprovado, da autoria de um arquitecto. A vida não pára de me embaraçar.
Certo é que estas pessoas estão defendidas. De tal maneira que, se o proprietário de algum prédio decidir pintar a fachada, a lei obriga-o a pedir um licenciamento à Câmara. É infinitamente mais fácil um vândalo legitimar um grafiti do que um arquitecto licenciar a pintura de um edifício deteriorado (a média de resposta às apreciações oscila entre os dois e os oito anos). Os poderes públicos incentivam o grafiti e desencorajam a reabilitação urbana.
Mas entre estas dúvidas tenho uma certeza, que não é artística. É moral e política. O Estado é o proprietário dos bairros municipais. E por morarem ali pessoas que não têm alternativa, elas não devem ser sujeitas a uma política urbanística, ou “cultural”, que não é imposta às pessoas que moram noutros bairros. O ponto principal é este. Com tanta preocupação em exibir virtude e proibir a discriminação, custa a compreender como ainda é preciso explicar certas coisas. As pessoas não devem ser segregadas sob pretexto nenhum, seja com base em etnias, em proveniências, em costumes, em religiões, ou em níveis de rendimento. O Estado é o primeiro a discriminar quando lhes impõe grafitis. Podia fazer-lhes pequenos jardins, ou usar as verbas que gasta em “arte” para lhes impermeabilizar os prédios e livrá-los do frio e da humidade. A habitação social devia distinguir-se o mínimo possível de qualquer outro bairro.
Há uns anos, há mais de 30 anos, ainda eu andava perdida nos enredos da Faculdade de Arquitectura, uma das minhas primas perguntou-me porque é que os bairros de habitação social eram os únicos pintados de cores estridentes. Parecia-lhe estranho que os pobres tivessem aquela sinalização pública exterior.
Só agora, passadas estas décadas e muitas outras perplexidades, compreendi que o Estado, e os arquitectos meus colegas que fazem projectos para o Estado, todos eles genericamente esquerdistas, fazem experiências com os pobres porque não as podem fazer com os outros. Contam com a inerente impotência de quem não tem como responder-lhes ou castigá-los.
Lembrei-me dessa conversa quando li a papeleta da Iniciativa Liberal, em toda a bem-aventurança da sua simplicidade.