Entre nós, existem 73 anos. E dentro desses 73 anos, existem meses que, se divididos, formam semanas e dias. Não sei quantos dias há em 73 anos, nem tenho necessidade em contá-los (mas tenho curiosidade). Apenas sei que em 73 anos há uma vida, que é a dele sem mim – ou que é a do mundo dele sem mim.

Já sei ler há algum tempo. Leio todo o tipo de coisas. Livros, jornais, artigos, notícias, revistas, poemas, letras de músicas (que são poemas), manuais ou livros de instruções. E adoro ler todo o tipo de coisas. Tudo aquilo que está escrito está escrito por uma razão. Não há nada que tenha sido escrito em vão. Não pensem o contrário. Todas as letras que se juntaram e formaram palavras, e depois frases, têm um sentido específico. Estas palavras, que são minhas e de mais ninguém, têm também um objetivo, que foi por mim traçado.

Apenas eu sei o verdadeiro significado destas palavras. Ainda assim, peço-vos que as leiam, guardem-nas e, se quiserem, se as considerarem um tesouro que é só vosso, escondam-nas para não serem roubados por ninguém. Estas palavras são minhas, apenas minhas, mas a partir do momento em que elas entram na vossa boca, sobem aos vossos olhos e entram nos vossos sentidos, também são vossas.

Só não quero é que pensem que sabem o verdadeiro significado delas, porque nunca saberão.

As «Gymnopédies» pertencem apenas a Satie.

O «Entrada» pertence apenas a Souza Cardoso.

A «Divina Comédia» pertence apenas a Dante.

Só quem cria é que sabe o significado da criação.

Apesar de já saber ler há algum tempo, apenas há um par de anos comecei a receber, como presente, folhas com palavras. Cartas escritas à máquina, com uma ou outra correção a esferográfica.

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(A idade não perdoa, nem as teclas das máquinas de escrever).

Não há nada mais valioso do que uma folha de papel cheia de palavras nascidas e criadas na vida da pessoa que nos oferece a carta. Quando uma pessoa nos oferece palavras, oferece-nos parte da sua vida e a totalidade da sua experiência, que reúne a substância de que ela é feita: os seus medos, as suas desilusões, as suas paixões, as suas ansiedades, os seus sonhos e o seu amor por nós.

Leio estas cartas sempre na mesma altura do ano – por estes dias, na verdade. Uma carta por ano. Há já alguns anos que assim é. As cartas são, naturalmente, diferentes e guardam em si uma mensagem completamente distinta mas, apesar de tudo, falam sempre do mesmo: da nossa vida juntos. Quem as escreve é bom escritor e passou grande parte da sua vida com os dedos postos na sua máquina de escrever, que está ali mesmo junto à janela do seu escritório. Às vezes, engana-se e, em vez de recomeçar o texto numa nova folha de papel, pega numa esferográfica e corrige o erro que não é erro, pois é perfeição.

Ao lado da máquina de escrever, está uma janela grande que esconde um jardim ainda maior. O jardim, muito verde, é colorido, eu sei que é colorido porque, neste momento, enquanto escrevo estas palavras, estou muito longe dele, mas no reflexo da minha própria janela vejo o verde do jardim e o azul dos olhos do meu avô, o escritor.

Leio as suas palavras e penso compreendê-las, quando me apercebo que a carta que ele me escreveu é só dele, porque nela está escrita a sua vida e não a minha.

Estas palavras, porém, as que eu escrevi, são dele.