Aquando das últimas eleições dei-me ao trabalho de ler programas eleitorais – os do PSD, PS e Chega, os dois primeiros em diagonal. Movia-me a curiosidade de apurar onde estaria o alegado fascismo do último (mesmo sem rigor no uso da palavra, antes lhe conferindo a interpretação extensiva e abusiva que a esquerda para ela conseguiu) e, quanto aos outros, se havia forte pendor liberalizante, induzido por anos de passismo, num, e vestígios de anti-socratismo no outro.
Não é que interesse muito. O eleitorado não lê programas e faz bem – se for preciso torpedeá-los, os partidos, na prática, não hesitam, e o que define estes é mais a sucessão de escolhas e alianças e menos o imaginário que povoa as cabeças dos intelectuais militantes, com perdão da contradição.
(Sobre o PSD concluí que não senhor, de pendor fortemente liberalizante nicles, a sua versão de intervencionismo estatal é mais comedida, sensata e rigorosa que a do PS, mas a diferença é de grau, e, sobre o PS, o anti-socratismo consiste num declarado e recente amor da diminuição da dívida pública, Europa oblige).
Que isto é assim o Chega tem provado abundantemente. O programa eleitoral era, na parte económica, estritamente liberal, e todavia o partido tem cavalgado não poucas reivindicações que implicam aumento da despesa pública ou do peso do Estado. Na realidade o programa não diz, mas a prática mostra, que o fonds de commerce é o descontentamento de um crescente número de eleitores, irritados com a percepção de um país de empregados de mesa e a realidade de familiares, com diplomas, que dão à sola lá para fora; com a presença de estrangeiros que aqui vêm ganhar a vida, dos quais muitos são percebidos como uma potencial ameaça; com o irritante atropelo aos costumes que as causas de uma esquerda engenheira social tem feito passar, em parte, para as leis, e, no todo, para os editoriais dos magistrados da opinião consensual; com o desmoronar do sistema de saúde e dos de segurança policial (se real, neste caso, se apenas como mera importação de modas estrangeiras, conta pouco); e sobretudo com o abismo que o Governo tem vindo a cavar entre um país moderno, progressivo e iluminado na teoria, e desesperançado, esclerosado e acomodado na sua apagada e vil tristeza na prática.
Estes eleitores não vão desaparecer, e é provável que aumentem porque o país não cresce o suficiente para sustar a degradação da maquinaria do Estado, donde precisa de fazer reformas que ofendem interesses da massa enorme de dependentes que a barganha eleitoral tem vindo a engordar com o sucesso da esquerda; mas a existência mesma dessa massa impede-as. De modo que todos, incluindo o Chega, não serão demais para reverter o caminho do declínio insidioso.
É aqui que entram as recentes eleições espanholas. O desastre da governação Sanchez não foi suficientemente penalizado pelo eleitorado, por razões lá deles (Ricardo Dias de Sousa, que conhece bem os miasmas do pântano local, explica aqui os escaninhos do processo), e a realidade espanhola, por causa dos nacionalismos, não permite excessos de comparativismo. Porém, a tese central (de que a aproximação ao VOX não prejudicou o PP), essa sim, pode ser importada.
Do ponto de vista aritmético e lógico, já Telmo Azevedo Fernandes havia demonstrado que a cerca “sanitária” ao Chega é (qualificação minha) um exemplo de gritante burrice.
Mas como pelos vistos a paixão (no caso a aversão a André Ventura, suspeito que por não caber no molde do intelectual doutrinário, nem ser particularmente consistente, nem estar rodeado de bonzos do pensamento de fato e gravata que a esquerda tolera, nem se encaixar no rotativismo PS/PSD, ambos com adjacências) tolda o discernimento, vejamos de perto o que se vê no Chega que justifica o seu alegado perfil antidemocrático e infrequentável. Tomo para exemplo um bom artigo de Alexandre Homem Cristo elencando objurgatórias, que transcrevo e comento:
«… o VOX serve essencialmente de obstáculo à composição de maiorias. Por um lado, porque provoca uma fragmentação dos votos que prejudica a eleição de deputados: em 2023, PP e VOX somaram juntos», etc.»
Que bom seria um mundo tranquilo onde não aparecessem partidos novos para satisfazer aquelas pessoas que deixaram de estar confortáveis nos antigos. Mas essas pessoas não vão desaparecer, são uma fatia significativa dos votantes e tendem a crescer na exacta medida da falta de resposta aos problemas que existem ou creem existir. Habituemo-nos: rotulá-los de deploráveis, fascistas ou infrequentáveis não apenas os reforça nas suas convicções como reforça também o conjunto das esquerdas que interesseiramente assim os veem.
«… representa um ataque ao regime democrático e aos valores fundacionais das repúblicas liberais».
É lá, o Chega defende limitações à liberdade de expressão da opinião, à realização de eleições nos prazos e com as regras constitucionais e legais, o desrespeito da Constituição, das leis e dos tribunais? É boa, não me tinha apercebido. Mas como a acusação é grave conviria demonstrá-la. E por favor não se invoque o ataque à comunidade cigana, por exemplo, como demonstrativa de uma generalização abusiva e uma inerente pulsão fascista. Porque a generalização é de facto abusiva, mas não o é menos a sistemática omissão da pertença do criminoso xis ou ípsilon a um grupo social com características distintivas, como se fosse missão da comunicação social escamotear informações para o efeito de os leitores se despirem dos seus preconceitos.
«… exibe um amadorismo confrangedor, um grupo parlamentar medíocre e uma embaraçante falta de quadros políticos — só existe André Ventura».
Mithá Ribeiro e Pacheco de Amorim (com cujas ideias e opiniões não tenho necessariamente de concordar) são deputados e não me parece que se distingam pela mediocridade. Os outros não conheço, mas dois em doze são 16%. Está o Alexandre convencido de que nos outros partidos 16% dos deputados se distinguem pelas suas exaltantes qualidades de tribunos? Eu não. E a falta de quadros que não dê cuidados – o sucesso cria-os porque nascem debaixo das pedras e o insucesso afasta-os porque vão para pastagens mais verdes. Pode ser que Ventura não tolere quem lhe possa fazer sombra, mas isso é coisa para preocupar apenas os militantes, e os dos outros partidos deveriam agradecer o favor.
«… afasta eleitores e enfraquece a direita: num país sociologicamente mais à esquerda e sob a memória traumática de um regime autoritário associado à direita, não há qualquer tolerância para os radicalismos de direita, mesmo se essa tolerância existe para os de esquerda (que muitas pessoas aceitam por associarem à resistência ao Estado Novo)».
Que o país está sociologicamente mais à esquerda não oferece dúvidas. Todavia, se admitirmos necessário, como eu, que esse estado de coisas se reverta, é necessário combatê-lo, não viver perpetuamente em estado de vénia para não ferir susceptibilidades. Depois, o Chega tem posições (como por exemplo as que defende em matéria penal) que só por si seriam suficientes para me afastar, mas, e daí? Onde está escrito que as linhas vermelhas que o bem-pensismo quer desenhar em torno do partido não possam ser desenhadas, em caso de qualquer acordo, em torno do isto e aquilo impalatável? O episódio recentíssimo da ridícula carta de Ventura ao Papa diz alguma coisa sobre o seu oportunismo e inconsistência, mas desde quando deslizes episódicos (e, no caso, quase cómicos) chegam para ostracizar partidos?
Finalmente: o PS de Mário Soares morreu há muito (Costa enterrou-o definitivamente), e a tal memória traumática do Estado Novo está moribunda. Dizer que o Chega é infrequentável enquanto se considera normal que o PCP e o Bloco façam parte de soluções (ou, em Espanha, já agora, partidos terroristas ou amputacionais do todo espanhol) releva de, por caridade, estrabismo político.
Votarei no CDS, que não ando a reboque de modas. E não conheço ninguém que no PSD ou na IL deixasse de votar nestes partidos por causa do alegado perigo de um entendimento com o partido dos fascistas. Porque um sócio minoritário que traga capital não vai definir a política da empresa – isso é o que fazem os sócios maioritários. No Chega sabem bem disso, que fazem teoricamente exigências (de pastas ministeriais, por exemplo) que sabem não poder ser cumpridas. O que quer dizer que entendem, e bem, que para continuarem a crescer o melhor é a chamada direita agir como se fosse de esquerda.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.