No passado dia 10 de março estreou-se uma comédia portuguesa. É uma comédia que se vai desenvolver segundo um conceito inovador: exibida em vários suportes simultaneamente – algo inédito a nível internacional.
O suporte principal será a televisão, obviamente, em vários canais, de sinal aberto e por cabo. Cada canal terá diferentes perspetivas de “autor”, diretores de fotografia distintos e algumas variações de guião, devidamente adaptadas aos respetivos segmentos de público. Na internet, haverá conteúdos vários, nomeadamente, memes e publicações nas redes sociais, sendo um suporte de desfrute alargado desta comédia que agora se iniciou. Haverá também espetáculos ao vivo, em palcos a funcionar por todo o país, com destaque para o palco principal e com os maiores meios de produção da capital: o Parlamento.
O episódio de estreia de dia 10 de março deixou grandes expectativas para as semanas seguintes, explorando uma narrativa com forte aposta na ironia, um dos mais requintados recursos da comédia. No ano de celebração do 50º aniversário da Revolução, que ofereceu aos portugueses a Democracia, deixando para trás décadas de regime fascista, o povo português elege como terceira força política um partido que pretende “limpar Portugal”.
Este início acabou por ser surpreendente, visto que no período de campanha – perdão… de promoção da série – houve demasiadas incursões ao nível da baixa comédia, levadas a cabo através de insultos pessoais e grosseiros de personagens como João Tilly, por exemplo, do casting regional por Viseu, usando alguns recursos de comédia física, por exemplo no momento em que se refere ao corpo de uma opositora vegan.
Naquele episódio de 10 de março assistimos, em flashback, a uma cena típica de uma clássica comédia de enganos com uma percentagem risível de votantes no ADN por equívoco com a sigla AD. Na peça “Anfitrião” de Molière, Júpiter toma a forma de Anfitrião para conseguir ir para a cama com a sua mulher Alcmena. No final, Anfitrião e Alcmena não têm mais remédio que aceitar o engano de Júpiter (com um deus não se brinca!). Os votantes equivocados tiveram de aceitar que foram para a cama com o ADN (e com o ADN não se brinca; serve de prova!).
Foi notória a influência do teatro do absurdo: num distrito que vive do turismo e dos “não portugueses” ganha um partido que não aceita os estrangeiros em Portugal! Num episódio posterior pudemos ver, mas já sem grande surpresa, os emigrantes portugueses votarem nessa terceira força política anti-imigração.
Longas cenas típicas de comédia clássica adivinham-se nos próximos capítulos, com os vários enredos a tentar viabilizar um orçamento retificativo e condições de governabilidade. Esta comédia à escala nacional vai arrasar com todas as outras.
Esta comédia (real) é de uma ironia tal, e tão caricatural que o humor que se faça não vai resultar. Vai ser como fazer uma caricatura de uma caricatura: não tem piada nenhuma.
É trágico, porque todos nós somos guionistas e ao mesmo tempo atores nesta comédia. Vamos viver dentro dela, e tal como os grandes personagens cómicos, não vamos ser conscientes do riso que vamos provocar.
Fazemos parte de um guião com protagonistas e situações tão perigosas que temos tudo para nos tornarmos personagens de uma comédia negra contemporânea.
Talvez num futuro próximo queiramos acordar deste pesadelo tragicómico e, tal como Segismundo de “A Vida é Sonho” de Calderón, queiramos declamar:
“O que é a vida? Um frenesim.
O que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção,
e o maior bem é pequeno;
pois toda a vida é sonho,
e os sonhos, sonhos são.”