O confisco não baseado numa condenação (CNBC), longe de ser uma excentricidade, é uma forma de perda ou confisco adotada pela generalidade dos Estados do nosso entorno civilizacional. Instrumental para a recuperação de ativos, isto é, para o desapossamento de instrumentos, produtos e vantagens do crime, visa efetivar a ideia de que o crime não pode compensar.

Mas nem entre nós o CNBC é aquisição recente. Já em 1982 o Código Penal vigente o aflorava, se bem que apenas para a perda de instrumentos e produtos do crime considerados perigosos (artigo 107.º), tendo sido, em 1995, timidamente estendido às vantagens (artigo 111.º). Depois, em 2002, um legislador mais decidido (coisa rara por estas geografias), inspirado pela legislação italiana anti máfia da década anterior, consagrou um robusto mecanismo de confisco do enriquecimento ilícito: em caso de condenação por crimes de determinado catálogo, essencialmente de cariz económico financeiro, o tribunal declara também a perda a favor do Estado do valor do património do arguido que seja incongruente com os seus rendimentos lícitos, ainda que não esteja diretamente relacionado com os crimes da condenação (Lei 5/2002).  Claro que a inovação suscitou reações adversas, porque a comunidade é naturalmente hostil a quaisquer inovações. Mas a jurisprudência veio paulatinamente a dar-lhe execução, com claro apoio do Tribunal Constitucional.

Em 2017, em virtude da transposição para o direito interno da Diretiva Europeia 2014/42, a perda não baseada numa condenação generalizou-se no nosso sistema, sendo admissível “ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tiver sido declarado contumaz” (artigos 109.º, n.º 2 e 110.º, n.º 5 do Código Penal). Só faltaram as normas processuais penais.  E, apesar de o legislador nacional ter ido mais longe do que a própria Diretiva (que só impunha os casos de doença ou fuga), ninguém se exasperou. Mas quando agora, visando reforçar os instrumentos de repressão da corrupção, o Governo inscreve em agenda a adoção dessa medida como se fosse coisa inédita, eis que surgem dúvidas e até proclamações indignadas.

Sem fundamento válido, em nosso entender. A intenção anunciada mais não parece constituir que um passo de aperfeiçoamento, desta feita formulado ao abrigo de mais uma Diretiva comunitária, relativa à recuperação e perda de bens (a Diretiva 2024/1260, de 24 de abril). Diretiva esta produzida porque o regime das anteriores confessadamente “não permitiu alcançar plenamente o objetivo estratégico de combater a criminalidade organizada através da recuperação dos seus lucros” (cfr. preâmbulo). Diretiva esta a que Portugal terá que adaptar o seu direito interno.

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E em que consistirão estas medidas de aperfeiçoamento necessárias para cumprir as obrigações europeias do Estado português? Desde logo na criação das necessárias normas processuais, tornando mais claro que a perda apenas deverá ser permitida nas situações em que teria sido possível que o processo penal tivesse levado a uma condenação definitiva por uma infração penal caso não se tivessem verificado certas circunstâncias previstas na lei (doença, fuga, morte do arguido ou prescrição em determinados casos) e o tribunal estiver convencido de que os bens a ser declarados perdidos são resultantes dessa infração penal ou estão associados à mesma (artigo 15.º). Depois, permitir o confisco de bens pertencentes a um condenado por uma infração penal sempre que a infração cometida seja suscetível de gerar um benefício económico e o juiz esteja convencido de que esses bens são resultado de conduta criminosa (artigo 14.º).  Depois, ainda, admitir a perda de bens identificados no contexto da investigação de uma infração penal, desde que o juiz esteja convencido de que eles resultam de crime cometido no âmbito de uma organização criminosa e que esse crime seja suscetível de gerar benefícios económicos substanciais (artigo 16.º). Em suma: casos que, embora consagrados noutros artigos da Diretiva, também são exemplos paradigmáticos do CNBC.

Estas medidas robustecedoras têm suporte na jurisprudência do TEDH, que, por exemplo, em maio de 2015, decretou que era congruente com o artigo 1.º do Protocolo n.º 1 à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (que protege o direito à posse e propriedade de bens) uma lei que permite o confisco de produtos ou vantagens de atividades ilícitas mesmo na ausência de condenação penal anterior (cfr. caso Gogitidze e outros vs. Geórgia).

Tais soluções legislativas não serão, por certo, mais excêntricas para o nosso paladar jurídico do que a tipificação do crime de enriquecimento ilícito, por que muitos anseiam.  Cremos, pois, ser a intenção agora anunciada um passo bem mais moderado no caminho certo. Assim se concretize!