Começando o ano lectivo, recomeçam os rituais das praxes estudantis em mais de duas dezenas de cidades onde existem Universidades e Politécnicos. Se nas academias de Lisboa ou no Porto esta realidade é bastante periférica, o mesmo não se pode dizer noutras paragens, com a academia de Coimbra à cabeça. Confesso-me apreciador de uma sã tradição académica: fui orgulhoso membro de uma tuna académica centenária (com capa, batina, praxe, etc.). Mal sabia eu onde me levaria o destino… Mas nada é por acaso: a praxe universitária com os seus trajes e cerimónias inspira-se, em boa parte, no simbolismo religioso católico. De onde julga o leitor que vêm as “orações de sapiência”, os solenes actos académicos, a capa e a batina? A Universidade foi uma invenção da Igreja – que a apoiou e tutelou durante séculos – e os vestígios simbólicos permanecem. Em Coimbra, os estudantes mimetizaram com humor este imaginário. Foi assim que ao traje talar académico se juntou o latim macarrónico e, sobretudo, o código da praxe. Nele encontramos uma iniciação aos símbolos, costumes, hierarquias, direitos e deveres estudantis em 290 artigos de prescrições quase religiosas. A praxe coimbrã foi, noutros tempos, um potente e eficaz elemento de integração social, ajudando a nivelar classes e origens, formando bons hábitos nos caloiros (deitar cedo, estudar, trajar correctamente, relacionar-se, respeitar os mais velhos…), sem esquecer a proverbial “farra”, própria da idade. Por estas e outras razões, durante a década de 70 do século passado, a praxe estudantil e o marxismo cultural reinante se tornaram inimigos figadais. Revolução nunca quis rimar com tradição.

Coimbra é a origem da tradição estudantil que se estendeu às outras academias. Pelo caminho, porém, surgiu um sem número de “pseudo-tradições” que resultaram nas praxes que hoje vemos: hordas de caloiros desfilando por ruas e praças, gritando alegremente obscenidades – às três da tarde ou às três da manhã – em rituais de humilhação voluntária, onde alunos mais velhos impõem uma tradição académica inventada anteontem. E quando estas “tradições” são inventadas e tuteladas por “cábulas”, não se pode esperar muita inteligência. Neste triste espetáculo exibem-se, sempre aos gritos, modos autoritários e sexistas que alguns justificam como preparação adequada para a dureza do mundo profissional. Da minha parte creio, sim, que estas práticas intoxicam futuros ambientes profissionais. Pelo caminho pratica-se uma autêntica indução ao álcool e abre-se um submundo de pequenas ou grandes coacções: a exclusão de actos estudantis, de grupos académicos e até do acesso a apontamentos partilhados… para não falar de abusos sexuais disfarçados de diversão. A magna celebração de tudo isto são os festejos académicos que se tornaram numa apologia do excesso, patrocinado por interesses comerciais e até políticos. Assim se contradizem, alegremente, noções básicas aprendidas nos cursos de medicina, direito, psicologia e ambiente, pelo menos. Não deixa de intrigar o modo como uma juventude que lida mal com freios à própria liberdade se submete acriticamente à pressão do grupo. Estes rituais de iniciação e obediência, com um sem número de regras, põem “num chinelo” a religião mais rigorista! Resumindo: aquilo que deveria ser um saudável “tirar do sério” desinibidor (marcando a entrada numa nova fase da vida), tornou-se numa monumental falta de respeito por si próprio e pelos outros.

Perante este cenário parece haver uma desresponsabilização geral das Universidades e Politécnicos que acordam sobressaltados quando há uma tragédia ou um escândalo. Ao pôr-se fora da praxe, proibindo-a nas instalações académicas, as escolas exportaram um degradante espectáculo para “fora de portas”. É caso para dizer que a falta de autêntica autoridade e uma condescendência (um pouco soixante-huitard) com a “irreverência estudantil” fez escapar das mãos todo este tema. Falo da academia, mas também das Câmaras e até da Polícia, que permite à praxe desmandos que não tolera noutros casos. Da parte da Igreja, alguma redução da pastoral universitária a “bênçãos das pastas” também dá (muito) que pensar.

Tradição é aquilo que de melhor uma geração entrega à que a sucede. Na Jornada Mundial da Juventude, o Papa Francisco sublinhou que “a Universidade não existe para preservar-se a si própria como instituição, mas para responder com coragem aos desafios do presente e do futuro”. Que bom seria poder entregar-se às novas gerações uma tradição académica melhorada! Uma praxe integradora, que ajudasse a superar barreiras e vergonhas inúteis, que ajudasse a quebrar isolamentos e a integrar, que fosse uma experiência de companheirismo no viver a liberdade de forma responsável, criativa e alegre. Uma praxe inteligentemente orgulhosa dos seus símbolos. Em abono da verdade, há alguns lugares onde isso acontece. Também não há dúvida que os jovens adultos procuram (sempre o fizeram!) experiências radicais na diversão, nas relações e mesmo na fé! E que alguma dureza no trato faz parte daquilo que se espera nesta fase da vida (antigamente os rapazes encontravam isso mesmo nas recrutas militares). Acontece, porém, que tudo isto pode ser bem feito ou mal feito. O tempo universitário é precioso, pois nele se formam os contornos da personalidade adulta, das ideias, das relações e também dos hábitos — bons ou maus — que acompanharão a jornada da vida. É essencial que haja a largueza necessária para treinar a liberdade, mas perde-se muito quando este treino deforma o essencial da vida: a bondade, a verdade, as relações, a beleza.

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