O cancro pediátrico é a primeira causa de morte por doença na criança após o primeiro ano de vida. A cada três minutos que passam, uma criança ou adolescente morrerá no mundo vítima da doença. Neste ano que começou há pouco, 300.000 crianças e adolescentes até aos 20 anos serão diagnosticados com cancro. Se as primeiras linhas deste parágrafo nos prendem pelo horror, as seguintes devem prender-nos pela esperança: com acesso a cuidados de saúde de qualidade, a taxa de sobrevivência destas crianças e adolescentes é superior a 80%.
É por estes números, simultaneamente preocupantes mas carregados de confiança, que numa parte muito substancial do mundo – da Nova Zelândia a Espanha, do Chile ao Canadá, da África do Sul à Roménia ou à Índia – se assinala hoje o Dia Internacional da Criança com Cancro. A data pretende aumentar a consciência da sociedade para este drama mundial. Fá-lo com especial foco nos países menos desenvolvidos, onde muitos casos permanecerão por diagnosticar. De facto, 80% das faixas etárias referidas provém de países com rendimento médio / baixo onde os sistemas de saúde são fracos, frequentemente inacessíveis, e os medicamentos essenciais não estão disponíveis ou são demasiado caros. Fá-lo, ainda, porque muitas destas crianças não recebem, ou não completam, os cuidados de saúde indispensáveis. Por isso, mais de 90% das mortes por cancro na infância ocorre em países com poucos recursos.
Em Portugal são detectados, anualmente, mais de 350 casos de cancro em crianças ou adolescentes, sendo que a taxa de sobrevivência é elevada, ao nível dos países mais desenvolvidos. No entanto, o espaço de tempo que medeia a frase “o seu filho/a tem cancro” e a frase “o seu filho/a está curado” pode ser longo, seguramente desestruturante, repleto de incertezas, angústias e esperanças em proporções nem sempre justas. Os tratamentos e os internamentos tanto podem ser intermitentes como longos, obrigando a ausências imprevistas do lar, da escola ou do local de trabalho no caso dos Pais, com consequências óbvias na estabilidade familiar, escolar e laboral. Para uma família dos Açores ou da Madeira, do interior mais interior ou do Algarve, o cancro numa criança ou num adolescente pode implicar uma alteração radical de ambiente – mudança de casa, de cidade, de amigos; perda das referências de cheiros, de ruídos, de rotinas.
Podemos olhar para o cancro pediátrico como um processo que retalha a manta que é a vida das pessoas afectadas. Mas podemos olhar para o cancro pediátrico como uma tapeçaria que se vai construindo todos os dias com os fios que são as certezas: os tratamentos, as consultas, os medicamentos, os efeitos colaterais, as estatísticas, as informações garantidas. Entre estes fios, porém, existe uma enorme imprevisibilidade feita de perguntas por responder: para onde vou viver com o meu filho? Como vou viver, com que dinheiro? Como garanto o meu posto de trabalho? Como vou encher os meus dias de solidão e desesperança, quem me dará a mão para partilhar uma alegria ou uma tristeza? Quem ficará com o meu filho para eu ir às compras ou para me resguardar num isolamento que protege? Quem me responderá a todas as minhas dúvidas? Quem perceberá o que eu estou a passar?
A Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro, nasceu em 1994 com o objectivo de preencher os vazios desta tapeçaria, de manifestar a sua presença nos pontos do caminho para onde ninguém olha, onde ninguém está ou está desatento, porque os apoios do Estado são limitados, porque o espanto e a angústia impedem a orientação nos corredores do hospital ou nos meandros da lei, porque não há força anímica que sustente dias infindos num quarto de pensão impessoal ou num banco de automóvel. Mas, acima de tudo, porque ninguém fala melhor com uns Pais assustados do que uns Pais que passaram pelo mesmo; ninguém fala melhor com uma criança a quem foi diagnosticado um cancro do que um adolescente que percorreu com sucesso esse caminho, e que se torna a prova viva da possibilidade de cura.
A Acreditar, como única instituição portuguesa de solidariedade social exclusivamente dedicada à oncologia pediátrica, constitui-se como uma entidade complementar: não nos substituímos a ninguém cuja competência ou autoridade sejam superiores; não nos substituímos aos Pais, aos profissionais de saúde, ao Estado. Trabalhamos em conjunto com todos, para que a vida das crianças e adolescentes que foram afectados pelo cancro, assim como a dos seus Pais, seja mais fácil, mais confortável, mais digna, menos penosa; para que a possibilidade de cura destas crianças e adolescentes seja cada vez maior, e as sequelas cada vez menores; para que a legislação aplicável nestes casos não seja um espartilho em cima de uma tragédia. Para isso, e para muito mais que não cabe neste artigo, é preciso alargar a consulta dos doentes que ultrapassaram a doença com sucesso; é forçosa a criação segura de um Registo Oncológico Pediátrico integrado no Registo Oncológico Nacional; é imperioso garantir-se a continuidade dos estudos, em ambiente escolar ou hospitalar, a quem deles precisa ou quer; é necessário salvaguardar-se os direitos laborais de quem tem de ausentar-se de forma repetidamente fraccionada do seu posto de trabalho.
Como condição necessária, mas não suficiente, para que o referido acima se cumpra, é fundamental que a interacção entre as associações de doentes e os hospitais de referência seja cada vez melhor, com canais de comunicação próprios que proporcionem, entre outros, o conhecimento antecipado de planos de alteração na oncológica pediátrica. Pretende-se tão só assegurar benefícios óbvios para estes utentes que, por serem crianças e / ou adolescentes, vivem uma situação de enorme fragilidade.
Hoje, Dia Internacional da Criança com Cancro, a Acreditar inaugura a sua terceira casa de acolhimento, desta vez no Porto, em terrenos do IPO cedidos para o efeito. À semelhança do que já acontece com as casas de Lisboa e Coimbra, esta será a casa longe de casa para todos os que precisam e não têm um sítio onde ficar. Aqui, não obstante a diferença de sotaque, de hábitos alimentares, de ambiente social ou familiar, quer sejam nossos conterrâneos, quer dos PALOP, todos usarão a mesma linguagem, todos recorrerão a expressões verbais ou não verbais que caracterizam uma comunidade afectada pelo mesmo drama: criança, cancro, adolescente, dor, lágrimas, risos, voluntários, profissionais, mãos que tocam, olhos que focam, sentido para a vida; esperança, esperança, esperança. Ali, naquela casa como nas outras, viverão o tempo que for necessário, sem mais custos do que os custos que sobrecarregam uma alma confiante ou um corpo cansado. Não viverão da generosidade da nossa associação, que mais não somos do que fiéis depositários, mas da generosidade de empresas e particulares que nos permitem prosseguir o nosso trabalho em prol de quem devia estar num recreio de escola, não num corredor de hospital.
Hoje, dia 15 de Fevereiro, é tempo de reafirmar uma convicção que une médicos e associações de todo o mundo: nenhuma criança, qualquer que seja o seu país de origem, condição social ou religiosa, deveria morrer de cancro.
Presidente da Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro