“A maior perda? Nunca vir a saber como é não ser doente de cancro ou não ser sobrevivente.”

A frase é de uma rapariga americana, sobrevivente há mais de 30 anos de uma leucemia grave. No caso dela – como no caso de tantos outros – a doença deixou-lhe marcas físicas, mas também emocionais. Nunca virá a saber o que é a “normalidade da vida”, aquilo que para alguém com quem me cruzei, e vítima também de cancro, era o seu ideal de felicidade.

Hoje, 15 de Fevereiro, uma parte substantiva da comunidade internacional fala de oncologia pediátrica, dos 80% de sobrevivência no mundo desenvolvido, dos 20% de sobrevivência nos países mais pobres, aqueles onde, ironia das ironias, a taxa de incidência é maior. Hoje ainda, a frase forte da Childhood Cancer International – organização que engloba mais de 170 organizações de pais de crianças com cancro em quase 90 países nos 5 continentes – menciona a dor e a perda, e a necessidade de erradicar ambas. Hoje ainda, e infelizmente ainda, a cada dois minutos há uma criança no mundo diagnosticada com cancro.

Falar deste tema é lembrar o que há por fazer no mundo. Mas, pelas razões mais óbvias, o foco principal vai para Portugal, onde as estatísticas são as de um país desenvolvido. Não obstante, a cada dia que passa há pelo menos uma criança diagnosticada com cancro. Por trás desse diagnóstico há um mundo que desaba, e cuja reconstrução é dolorosa, demorada e de sucesso indeterminado. Falo das famílias que se desenraízam durante meses – anos, mesmo – para acompanharem os tratamentos dos filhos. Falo das crianças que abandonam as rotinas escolares, dos Pais que perdem os empregos e que por isso vendem as casas onde vivem; falo nos sobreviventes e no estigma social no acesso ao emprego, à contratação de seguros ou à concessão de empréstimos. Mas falo também nos registos oncológicos pediátricos deficientes, na falta de consulta para os sobreviventes, na falha no acompanhamento psicológico de doentes e família mais directa, nos jovens que são internados fora de ambientes pediátricos ou em condições menos dignas, no excesso de burocracia e na dispersão das medidas de apoio.

Talvez o parágrafo acima seja o retrato, forçosamente difícil e incompleto, das coisas tangíveis, aquelas que podem resolver-se com vontade política, com entendimento entre profissionais de saúde, com algum dinheiro e abandono de prerrogativas ou de estatutos. O mundo de um filho com cancro é isto – é muito isto. É o incêndio em cima da derrocada, o chão que desaparece, os espaços que o Estado deixa vazios e que a Acreditar tenta preencher para que ninguém seja sugado para um buraco negro. Mas o mundo de um filho com cancro tem outro lado: a vida interior das pessoas, dos seus sentimentos e fragilidades, das angústias que são caladas ou gritadas da pior forma, da aceitação serena ou não, da procura de um sentido para tudo.

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Esta semana estive em Paris, participando no lançamento de um projecto que beneficiará crianças com cancro em partes específicas do mundo. Poderíamos pensar em equipamento, em verbas atribuídas à investigação, em compromissos farmacêuticos que marcassem a diferença no acesso à cura e à eliminação da dor. No entanto, e por mais prosaico que possa parecer, a primeira parte deste projecto assenta numa palavra: massagens. Um primeiro olhar distraído dará lugar a um segundo olhar espantado. Massagens? Pensemos numa criança pequena, talvez mesmo um bebé, a viver em ambiente de grande ou total isolamento. Pensemos numa criança que olha para uns Pais – essas pessoas em quem ele confiava cegamente  e que sente agora responsáveis pela dor que deriva dos tratamentos. Pensemos nos Pais, na angústia de não poderem pegar no seu filho, não poderem abraçá-lo, não conseguirem sequer tocar-lhe. Não falamos só das crianças em isolamento, mas também das outras a quem os Pais tocam menos porque não sabem como tocar num corpo dorido e que se transformou.

No mundo da oncologia pediátrica uma massagem é mais do que umas mãos que correm um corpo. Esta massagem – feita como quem conta uma história infantil – é uma porta que se abre ao restabelecimento das ligações através do contacto físico entre Pais e filhos. O acto de tocar pode ser uma ferramenta poderosa, pode proporcionar uma sensação de conforto e segurança que ajuda a estabelecer um fluxo de energia saudável para todos. Para os protagonistas desta história difícil uma massagem é, acima de tudo, um gesto de Amor incondicional.

O mundo doloroso das crianças e jovens com cancro é isto: a falta de leis, de apoios sociais, de condições ou de políticas, o excesso de protagonismos ou de pequenas lutas próprias. Mas é, também, a angústia interna de uns Pais, os laços que se quebram, a confiança que se danifica, um espécie de carícia que se repete três vezes porque o corpo estranha, aprende e só depois aprecia.

A ciência deu à oncologia pediátrica uma taxa de sobrevivência de 80%. Já só falta o resto – as grandes decisões e os pequenos gestos.

Presidente da Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro; Vice-presidente da Childhood Cancer International