O Estado não teria precisado das comunidades judaicas se não fosse o conhecimento privilegiado que estas detêm do mundo judaico. Desde a publicação do Decreto-Lei n.º 30-A/2015, de 27 de fevereiro, que a Comunidade Judaica do Porto entendeu que a legislação hoje tida em mira visava voltar a ligar Portugal com os cerca de 1 milhão de judeus descendentes de sefarditas portugueses. Se o objectivo do legislador fosse o de conceder a nacionalidade a 100 milhões de descendentes de pretensos cristãos-novos, por certo a certificação poderia ser realizada por profissionais ligados às universidades e totalmente externos àquelas comunidades.

O preâmbulo do acima referido Decreto-Lei aprovado pelo Governo PSD/CDS, elemento básico de interpretação do diploma, deu guarida ao entendimento da Comunidade Judaica do Porto. A Conservatória dos Registos Centrais sempre afirmou a legalidade de tal entendimento, tal como a própria Ministra da Justiça, na Assembleia da República, em junho de 2020.

Durante anos pulularam os genealogistas a anunciar a nacionalidade portuguesa por via sefardita, quando na verdade não procuravam os ancestrais dos candidatos nas comunidades judaicas da Turquia, Tunísia ou Marrocos, mas tão-só em Portugal, onde outrora só existiam católicos.

Vejamos um caso hipotético, para melhor percepção do que está em jogo. Manuel da Silva, pertencente a uma família católica no Brasil há 15 gerações, contratou um genealogista que conseguiu identificar um seu ancestral português no século XVIII – Tiago Silva – vítima infeliz do Santo Ofício. O caso é comovente, mas Manuel não é judeu à luz de qualquer corrente do mundo judaico (por mais liberal que este seja), não é sefardita (qualidade dos judeus que abandonaram Sefarad) e invoca um ancestral católico que nunca fez parte de uma “comunidade sefardita de origem portuguesa” no estrangeiro e cuja genealogia matrilinear judia se desconhece (não se podendo afirmar claramente que é judeu), para além de que a sua condenação pelo Santo Ofício foi igual à de muitos cristãos-velhos e tornou-se indistrinçável daquelas. Seria ele originariamente de família judia?

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A CIP/CJP nunca certificou casos semelhantes. Manuel da Silva tem direito à nacionalidade portuguesa? Sim. Mas tal direito não advém do n.º 7 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade, específico para descendentes de judeus sefarditas, mas sim do n.º 6 do mesmo artigo, que existe para simples descendentes de portugueses.

O mundo judaico sefardita ou ashkenazita só depende do critério seguro da tradição e não de genealogias de comunidades perseguidas durante séculos. Como poderiam existir tais genealogias? A própria migração para Israel está condicionada por um parecer do Rabinato-Chefe local (que por sua vez está conectado com os rabinatos ortodoxos de todo o mundo), nunca por longas genealogias que, do ponto de vista judaico, são apenas desenhos.

Descontando os raros casos de conversões ao judaísmo, ser judeu não é praticar a religião judaica. É uma genealogia: ser filho de mãe judia, que é filha de outra mãe judia e assim sucessivamente. O Rabinato do Porto, reconhecido pelo Grão Rabinato de Israel, procurou sempre, como primeiro passo, decidir de acordo com a halachá, único critério consensual no mundo judaico sobre quem é judeu. Este critério, à primeira vista pouco seguro, faz com que nenhum não-judeu consiga ser membro de uma comunidade judaica, casar no seio do judaísmo, ser sepultado num cemitério judaico ou ser cidadão de Israel, o chamado “crivo da halachá”.

A respeito dos critérios de certificação da CIP/CJP, é importante tecer algumas considerações jurídicas sobre o tema, tal como elas foram sendo apresentadas aos sucessivos Governos de Portugal entre 2015 e 2021.

O artigo 6.º n.º 7 da Lei da Nacionalidade prescreve: “O Governo pode conceder a nacionalidade por naturalização, com dispensa dos requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1, aos descendentes de judeus sefarditas portugueses, através da demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma familiar, descendência direta ou colateral.”

Por sua vez, reza o artigo 24.º-A n.º 3 alínea c) do Regulamento da Nacionalidade: “O requerimento é instruído com (um) Certificado de comunidade judaica com estatuto de pessoa coletiva religiosa, radicada em Portugal, nos termos da lei, à data de entrada em vigor do presente artigo, que ateste a tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, materializada, designadamente [vocábulo exemplificativo], no apelido do requerente, no idioma familiar, na genealogia e na memória familiar.”

Os requisitos objectivos comprovados de ligação a Portugal devem ser encontrados na “comunidade sefardita de origem portuguesa” (expressão que se repete múltiplas vezes no artigo 6.º n. 7 da Lei da Nacionalidade e no Decreto-Lei n.º 30-A/2015, de 27 de fevereiro), por natureza refugiada, não em território português, mas sim, como bem enuncia o preâmbulo do supra referido Decreto-Lei, “em algumas regiões do Mediterrâneo (Gibraltar, Marrocos, Sul de França, Itália, Croácia, Grécia, Turquia, Síria, Líbano, Israel, Jordânia, Egito, Líbia, Tunísia e Argélia), norte da Europa (Londres, Nantes, Paris, Antuérpia, Bruxelas, Roterdão e Amesterdão), Brasil, Antilhas e EUA, entre outras”.

De acordo com os artigos 6.º n.º 7 da Lei da Nacionalidade e 24.º-A n.ºs 2, 3 c), 4 e 5 b) do Regulamento da Lei da Nacionalidade, as menções à “tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa” e “a partir da comunidade sefardita de origem portuguesa” estão sempre umbilicalmente ligadas aos “requisitos objectivos comprovados de ligação a Portugal” que – sob tutela do vocábulo exemplificativo designadamente, que se repete – promanam de elementos como “os apelidos de família”, “o idioma familiar”, “a memória familiar”, “a genealogia”, “os registos de sinagogas”, “os registos de cemitérios judaicos”, “os títulos de residência”, “os títulos de propriedade”, “os testamentos” e outros.

Num livro bilingue (hebraico e inglês) publicado em março de 2017 – The Jewish Sephardic Diaspora, Through the Archives of the Jewish Community of Oporto –, distribuído pelas bibliotecas das capitais do mundo inteiro, já então para defesa antecipada da CIP/CJP, constam diversas listas de apelidos de (alguns) judeus de comunidades sefarditas de origem portuguesa, bem como uma lista de (alguns) apelidos de judeus que viviam em Portugal antes do Édito de D. Manuel. Esta última lista revela que os apelidos eram, em regra, hebraicos, ou melhor, portugueses daquela época. Não é simples a questão dos apelidos, como não é simples a questão do idioma familiar.

De nada vale um vídeo de alguém que aprendeu um pouco de ladino na actualidade mas que não é descendente de judeus sefarditas de Sefarad, da mesma forma que um Benveniste originário da Turquia pode não dizer uma palavra de ladino, mas é inelutável (e não uma questão de opinião) que, quanto à sua família, esse foi, durante séculos, o “idioma familiar”. O ladino nas suas diversas variantes, incluindo o haketia do Norte de África, é um idioma quase morto, em desuso, já só falado pelas gerações dos avós.

Outro importante critério que a legislação consagra é o da memória familiar. À partida, todos os requerentes invocam uma memória familiar de pertença a uma comunidade judaica de origem portuguesa. Tal memória, por si só, de nada vale. Tem de ser comprovada por testemunhos credíveis, em regra o Grão Rabinato local que tenha credibilidade haláchica no seio do mundo judaico e perante o Grão Rabinato de Israel.

À luz de toda esta materialidade, nos certificados de sefardismo da CIP/CJP pode ler-se que os mesmos são concedidos “com base nos elementos de prova oferecidos pelo requerente – respeitantes, para além do mais, à sua genealogia conhecida, aos territórios onde estiveram radicados os seus ascendentes e aos nomes, memórias e tradições de família –, articulados criticamente com o nosso conhecimento e compreensão da realidade, da cultura, da lei religiosa e das comunidades judaicas em geral e com a restante materialidade apurada ao longo do processo de avaliação, uma vez utilizadas as ferramentas de trabalho à nossa disposição”.

Tendo trabalhado durante sete anos no processo de certificação de judeus descendentes de sefarditas de origem portuguesa, a totalidade dos certificados de sefardismo emitidos pela CIP/CJP, com raríssimas excepções, foi concedida a famílias tradicionais sefarditas que durante séculos viveram em países dos Balcãs – Macedónia , Grécia, Bulgária e ex-Iugoslávia – e em países árabes ou muçulmanos – Turquia, Líbano, Síria, Marrocos, Argélia, Egito, Tunísia e Líbia – onde eram comuns os casamentos entre judeus de origem portuguesa e judeus de origem espanhola.

Supondo que a Conservatória dos Registos Centrais afirmava que o antigo Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, é um mero descendente de beduínos marroquinos, sem origem portuguesa, a Comunidade Judaica nada poderia fazer para além de invocar a tradição judaica. A Conservatória poderia rejeitar tal argumentação. O Governo poderia recusar a nacionalidade. A Comunidade manteria a sua opinião, sem que isso pudesse ser rotulado de fraude.

Durante três meses falou-se em termos depreciativos da certificação das origens sefarditas de Roman Abramovich, como se o respectivo certificado tivesse sido emitido com desonestidade intelectual por parte do Rabino-Chefe da Comunidade Judaica do Porto. O facto é que o certificado assenta na memória familiar do requerente, nos apelidos de família, nas opiniões de entidades informadas do mundo judaico, no apoio financeiro de décadas ao movimento Chabad de origem portuguesa e na desnecessidade material do requerente, que tem direito à nacionalidade lituana.

Onde está a falsidade neste processo de certificação pelo qual foi cobrado o emolumento de €250,00 e que foi levado ao conhecimento do Governo e da Conservatória dos Registos Centrais muito antes de o requerente obter a nacionalidade portuguesa?

A lei é clara. O Governo tem o poder de conceder ou não a nacionalidade a um candidato. A Conservatória tem o dever de verificar os documentos de sefardismo daquele. A Comunidade Judaica tem a missão de emitir um certificado com base nos critérios legais e no seu conhecimento do mundo e da tradição judaicos. Trata-se quase de uma opinião pericial, como explicou o Professor Rui Pereira, sem que corresponda à atribuição da nacionalidade, que é um poder discricionário do Governo.

A Comunidade Judaica do Porto crê que fez um bom trabalho durante os sete anos em que operou no processo de certificação. Foi um trabalho esmagador realizado de boa-fé. O Chefe-Rabino aplacou um universo imenso de candidatos, prejudicando grandemente a sua família, os seus estudos, o seu descanso. Foi remunerado por isso. A Comunidade Judaica do Porto pagou os seus honorários transparentemente, ano após ano, por via de transferências bancárias, para uma conta em Portugal, contra recibos emitidos a partir de Israel, país de residência, onde ele é tributado fiscalmente. É inaceitável a afirmação de que há uma conta bancária choruda com dinheiro que se suspeita advir de ilicitudes, donde se parte para uma catadupa de indiciações infindáveis.

Em linha de conta com a dimensão da comunidade judaica existente no tempo de D. Manuel (cerca de 10% do total da população), se a legislação de 2013/2015 continuasse indefinidamente poderiam ter sido certificados 1 milhão de judeus de origem sefardita. A opção legislativa foi outra. Desde abril de 2020 que se apontou o término da lei para o início de 2022. Chamou-se-lhe um prazo transitório. Assim foi. Nunca se desistiu desse intento.

Em 6 de dezembro de 2021, dirigindo-se ao Ministério da Justiça, que lavrara um projecto de regulamento muito restritivo, a Comunidade explicou que se justificava absolutamente a existência de uma plataforma electrónica com acompanhamento do processo de certificação em tempo real por parte da Conservatória. Foram apontadas as seguintes três razões:

  1. Em Portugal são frequentes as denúncias anónimas falsas para suscitar processos criminais inúteis que logo são noticiados nos jornais para destruir o nome das pessoas e das instituições. O próprio Presidente do Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações da República queixou-se de “um Caso Dreyfus” originado numa denúncia anónima, logo reproduzida na imprensa, que afirmava que os membros daquele Conselho eram violadores do segredo de Estado, corruptos e traficantes de influências, desta forma lançando uma suspeição intolerável sobre a idoneidade dos membros de um órgão que necessitava de estar acima de toda a suspeita para poder atuar na plenitude das suas funções. (jornal Expresso, 6.11.2020).
  2. O Ex-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça declarou que um enorme processo – conhecido como “processo dos vistos gold” – foi um exemplo de “manipulação da investigação criminal, usada como arma dissimulada de arremesso para influenciar, condicionar ou inflectir as tendências políticas da sociedade, do modo que melhor aprouver a quem a usa ou a quem dela se aproveita.” (jornal Público, 22.10.2020).
  3. Em Lvov, Jarkov, Tshernovitz, Bobruisk, Smolensk e centenas de outras cidades da União Soviética, as sinagogas-comunidades não foram fechadas todas ao mesmo, mas uma a uma, sempre da mesma forma: (i) uso da imprensa e de caluniadores para associarem as sinagogas a negócios, (ii) descrição de tais negócios com um cunho de amoralidade ou não-legalidade, (iii) reações negativas de alguma opinião pública e de judeus de palha, e (iv) destruição total da respeitabilidade das sinagogas e organizações judaicas correspondentes enquanto promotoras da vida judaica.

As denúncias anónimas, as fontes anónimas e outros jogos de bastidores marcaram o último compasso da legislação que concedia a nacionalidade aos judeus descendentes de sefarditas portugueses. Foi pena que tudo terminasse deste modo. Entretanto, os efeitos positivos daquela, em termos culturais, religiosos e de crescimento numérico da comunidade judaica nacional, são indesmentíveis, por muito que sejam remetidos ao silêncio. Não serão descritos aqui. Quem tiver interesse no tema certamente conseguirá encontrá-los.