Os cuidados da saúde da visão são os cuidados especializados de saúde mais frequentes? Na última década, no Serviço Nacional de Saúde (SNS), foram realizadas mais de um milhão de consultas hospitalares da especialidade de oftalmologia. O setor privado contribui com mais de 2 milhões de consultas da especialidade de Optometria, a que se deve acrescentar as da especialidade de Oftalmologia.

E ainda assim, em 2018, a lista de espera para primeira consulta hospitalar de especialidade de oftalmologia era superior a 233 mil pessoas com tempos de espera que atingem os 1.013 dias.

Mas porque continuamos a ter pessoas que sofrem de deficiência visual ou cegueira evitável, quando sabemos que mais de 50 por cento dos casos são erros refrativos de resolução tecnicamente simples, com melhor relação custo-benefício e impacto em ganhos de saúde e económicos extraordinários?

Em 2008, o então Primeiro-Ministro José Sócrates anunciava um programa de combate às listas de espera em oftalmologia, que pretendia colocar Portugal ao nível das boas práticas internacionais. O Ministério da Saúde da altura gastou 28 milhões de euros para contratualizar com hospitais públicos 75 mil primeiras consultas e 30 mil cirurgias em produção adicional. De acordo com o ex-Primeiro-Ministro: “Foi um programa bem-sucedido, para que o país resolvesse um dos mais gritantes problemas. Tínhamos um problema e resolveu-se com o SNS. Isto envergonhava o país.”

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Os números de 2018 não deixam dúvidas.  Os programas de gestão de listas de espera foram um fracasso. Espera-se que fazer o mesmo, em plena pandemia, vá produzir resultados diferentes?

O motivo para esta crise e para o crónico constrangimento no acesso à primeira consulta hospitalar, como à cirurgia, da especialidade de oftalmologia é a falta de integração dos cuidados para a saúde da visão e incorreto planeamento da força de trabalho. E quem o diz é a própria Organização Mundial de Saúde. Não adianta atirar dinheiro para algo que está fundamentalmente errado. A pandemia de Covid-19 exponenciou as debilidades e limitações do atual paradigma da prestação de cuidados para a saúde da visão no SNS, para um patamar nunca visto.

A solução técnica e científica, que os reconhecidos peritos mundiais apontam para assegurar acesso universal aos cuidados para a saúde da visão, é garantir cuidados de proximidade e na comunidade, através de força de trabalho bem planeada e organizada com oftalmologistas, optometristas e ortoptistas, em trabalho de equipa multidisciplinar e distribuídos pelos vários níveis de cuidados do SNS. Não é tolerável, que se continue a ignorar as recomendações da Organização Mundial de Saúde, as resoluções da Assembleia da República e o fracasso das experiências passadas com recuperação de listas de espera, onde está mais do que provado que atirar dinheiro para um problema e procurar soluções a curto prazo é muito mais dispendioso, e tem muito menos eficácia, do que implementar as melhores práticas já conhecidas e evidenciadas.

Cinquenta por cento das causas de problemas visuais em Portugal são erros refrativos ,que podem e devem ser atendidos, diagnosticados, prescritos e tratados nos cuidados de saúde primários! E temos os optometristas com as competências específicas para esta intervenção, formados pelas mesmas faculdades e escolas que formam os médicos, garantindo a mesma qualidade e segurança.

Esta abordagem representa um percurso menor para os utentes do SNS, com menor exposição ao contágio por SARS-Cov-2 ou outros vírus/bactérias, um custo menor para o Estado e privilegia o acesso à consulta hospitalar da especialidade de oftalmologia aos utentes que perdem, irreversivelmente, visão de dia para dia por falta de tratamento especializado à retinopatia diabética, glaucoma, catarata, degeneração macular relacionada com a idade, entre outros.

Um SNS sem optometristas é um SNS que está amputado da sua capacidade de responder a um dos direitos mais básicos dos portugueses: o direito de ver. Por cada dia que o Ministério da Saúde tarda em implementar cuidados primários de saúde da visão, mais portugueses cegam, ou são mergulhados numa deficiência visual permanente, que se pode e deve evitar. E não são necessários milhões de euros, nem planos extraordinários de produção adicional, de recurso ou de recuperação. Basta coragem, conhecer a ciência e ouvir a razão.

Membro do Grupo de Desenvolvimento das Recomendações de Intervenção para o Erro Refrativo da Organização Mundial de Saúde