Memória de João Villaret e Raul Solnado ou uma política cultural desejada em pandemia de sofrimento

“Nós, os do teatro, somos vendedores de sonhos. O público compra um bilhete e em troca não leva nada para casa. Se entra numa loja e compra uma gravata, leva a gravata. Aqui leva sonhos.” Retomo a memória de Raul Solnado, na sua maneira de dizer. Simples, sugestiva, clara, direta, no jeito de usar os comuns gestos de cada dia e de transformá-los, a ilustrar uma ideia, uma fantasia, um desejo feito verdade. O momento era de festa, quando assim falou aos muitos jornalistas presentes na conferência de imprensa em que anunciava a estreia do Teatro Villaret. Dois anos tinham passado a partir do conceito, da divulgação do projeto, até ao fim das obras. Estávamos no dia 5 de janeiro de 1965,  inaugurava-se o nosso primeiro teatro de bolso, novidade absoluta em Portugal. Espaço cénico intimista e experimental, o formato acompanhava então a transformação dos tempos, proposta para novos públicos, apresentando comédias, musicais, peças de teatro declamado, em alternativa ao cartaz das grandes salas de espetáculo em Lisboa. Cinco dias depois, a inauguração para o público esgotava-se em poucas horas, em duas sessões de beneficência, a favor do Instituto Português de Oncologia e da Liga Portuguesa dos Deficientes Motores. Desde o início, a solidariedade existiu no Villaret, como desde sempre aconteceu no espírito e na história do teatro, entre nós.

Retomo ainda o registo dos acontecimentos, e uso a imaginação. Fernando Pessa fala e agradece, em nome dos convidados. E há a imagem do movimento de gente, a descer os degraus até à entrada na plateia, conceção estética do arquiteto Daciano Costa, ou 426 lugares em cadeiras de cor vermelha sobre alcatifa azul escura, todas com visão plena do palco. Ao longo do percurso, revejo a expectativa de todos os presentes, o entusiasmo, a curiosidade. Sou capaz de reler no topo da escada, incrustadas em bronze na parede as palavras de João Villaret: “ Teatro é criação, imaginação, poesia. Para realidade, basta a fealdade da vida.”

Nestes dias de calor no corpo e sombras na alma, relembro e evoco a fantasia do sonho, na fala de Raul Solnado, e a realidade de João Villaret, na fealdade da vida. Na fase por que passamos, o teatro, as artes, a cultura não animam sonhadores e a vida tornou-se fealdade para os que a temperavam de alegria, de entusiasmo, de vocação realizada. Na fase atual do mundo, a morte é filme de terror, o sofrimento é capítulo da instabilidade, o medo é doença grave, a crescer. Todos sabemos porquê, as notícias estão aí.

Nos teatros, somos público, olhamos, vemos e ouvimos os atores, assistimos ao espetáculo. Invisíveis são os bastidores, os camarins, as instalações ténicas. Não acompanhámos o trabalho de texto, o rigor dos ensaios, a montagem do palco, a instalação dos cenários, os acertos de iluminação, a organização do guarda-roupa. Não vivemos a angústia da estreia. Desconhecemos os mil  pormenores implicados no milagre que é a grande arte. Ignoramos os nomes do contra-regra, dos maquinistas, dos carpinteiros, costureiras, eletricistas, funcionários. E os nomes dos muitos outros que nos recebem e orientam à chegada, e depois, dos que limpam, arrumam, desinfetam. Invisíveis, numerosos, como se não existissem, cumprem os seus turnos, por ali estão. Têm o teatro por ofício.

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Só em 1967 foi estabelecida a folga semanal para os atores e trabalhadores teatrais. Penso no ator Luis Pinhão, da Companhia do Teatro Nacional, que chorou quando pela primeira vez se sentou à mesa, à hora do jantar. Penso em Fernanda Borsatti, que dizia estar o mundo exterior ao avesso da sua vida de atriz. Em Vítor Norte, que descrevia a dureza de filmagens no Tejo e sentia a falta de um seguro de proteção. E mais. E mais.

Na Europa, em todas as áreas da cultura trabalham 7,2 milhões de pessoas. Em Portugal, não existe uma política cultural digna. Não se concretiza um fundo de emergência social. Entre os que criam e atuam nas várias disciplinas da arte, a situação é de catástrofe. Instalam-se desigualdades, carências. Pobreza. Fome. Não se sobrevive.

“Um país que não trata bem os seus artistas está moribundo,” diz Fernanda Lapa, atriz.