Quando Jean Jacques Rosseau, na senda da infundada «faith in science and development» de Francis Bacon, lançou a ideia do «bon sauvage», evocando a destruição da influência da sociedade para que a bondade humana irrompesse, não imaginaria certamente ao que isso conduziria. Desde logo, à «mauvaise sauvagerie» da Revolução Francesa e, através de Karl Marx e Antonio Gramsci, aos «bol’shiye uzhasy» do comunismo e ao «terrapieno sociale» do “marxismo cultural”. E, após e no que justifica estas palavras, à união entre a “foice e o martelo” aos “dólares” na perseguição à Igreja Católica na Nicarágua dos nossos dias.

A 27 de agosto deste ano, o reverendo padre Gonçalo Portocarrero d’Almada já falou, neste órgão informativo, sobre o que se está a passar nesse país. Não direi nada de melhor. A fasquia é insuperável. Mas gostaria de trazer à consideração um aspeto teológico que, infelizmente, se omite facilmente na sequência de elos que apontei no parágrafo precedente. Refiro-me ao papel dos pais europeus da, assim denominada, “teologia política” que, via Johann Baptist Metz e os seus discípulos, levaram aos pendentes menos cristãos da “teologia da libertação”.

Esses pais foram vários, mas gostaria de trazer à atenção dois autores que afirmaram que os mais relevantes conceitos das teorias, a si coevas, acerca do estado e das suas leis não eram senão noções teológicas secularizadas. Um ex-católico conservador e simpatizante, a dado tempo, com o regime Nazi; e um filósofo positivista judeu, depois convertido ao luteranismo, que se refugiu, nos EUA, desse mesmo regime: Carl Schmitt e Hans Kelsen, respetivamente.

Schmitt, radicado numa posição transcendental que vê em Deus o derradeiro garante da unidade do estado, envereda por uma postura dualista da relação entre o estado e a lei. Ele faz esta diferenciação para descrever e delimitar o que é a soberania, a ponto de sustentar que, por faculdades a si emergentes, a primeira de tais entidades poder transcender a segunda. Assim, é possível separar-se o estado da lei e, até, a legitimidade da legalidade, dando às decisões um cariz político que suplanta a ordem jurídica. Em consequência, haverá sempre lugar para uma soberana intervenção livre dos governantes, cuja autoridade pessoal não pode ser expressa dentro dos limites de uma simples ordem legal válida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Kelsen, por seu lado e alinhado com o teólogo Erik Peterson, defende a unidade, e até a identidade, entre o estado e a lei, colocando a soberania dentro das fronteiras da execução desta lei. Se assim é, existe a necessidade de uma perfeita harmonia entre estas duas entidades, num cenário de intervenções de procedimentos imanentes que, agora, fazem equivaler a legitimidade à legalidade. Não pode haver procedimentos extrajudiciais relativistas e heterónomos que neguem valores absolutos. Só assim se poderá assumir que, em democracia, todas as resoluções políticas deverão ser tomadas através de compromissos.

As disparidades entre as doutrinas destes dois autores, afora o aceitarem que as ideias modernas sobre o estado e a lei são conceções teológicas secularizadas, são evidentes. Quem tentou estabelecer pontes entre ambas, com efeitos inicialmente imprevistos, foi o teólogo católico Johann Baptist Metz. Este, re-conceptualizando as questões antes apontadas face à crise do Catolicismo ocidental e dos ideais europeus, propôs a sua própria “teologia política”.

Para Metz, a teologia católica não levara a sério os desafios do Iluminismo, carecendo, urgentemente, de enfrentar criticamente, já não o mesmo (entretanto superado devido aos seus devaneios), mas as realidades de si resultantes. Mormente as de índole mais concreta e prática, levando a que a Igreja Católica se devesse afirmar como uma decidida instituição política. Isto é, voltada para a sociedade e aberta a todos (e sobretudo aos mais necessitados).

Assim, de acordo com Metz, o debate de ideias e, particularmente, a colaboração com aquelas realidades, precisava de ocorrer no terreno característico delas, mas sem que a Igreja abdicasse do específico da teologia. Fundamental para tal processo era, de um lado, o recusar do otimismo do Iluminismo e, do outro lado, o viver na recordação, centrada na memoria passionis, dos derrotados da história e da memória. Só deste modo, repensando-se crucificada e arriscadamente o presente (que já tem em si o gérmen do futuro), não se cairá nas injustiças e iniquidades do passado. Note-se que nada disto pode decorrer de uma politização direta da mensagem cristã, mas de uma postura teológica que não receia viver politicamente.

Posto isto, o realçar do pecado é danoso, devendo-se sublinhar, isso sim, o sofrimento, o qual não pode ser tido como uma mera consequência do desamor. Surge daqui a ideia de que Deus não age na história para salvar do pecado, mas para poupar do sofrimento desnecessário, principalmente o vivido fruto de injustiças sociais, políticas e legais. E Deus faz isto, não visando o genérico, mas dando atenção ao indivíduo, no qual (e no que legitima a abertura teológica a elas) já estão presentes aquelas três dimensões: a social, a política e a legal.

Como é claro, todas as ideias levaram a um certo revirar da escatologia cristã e a um renunciar, totalmente cristão (de acordo com Metz), das estruturas de poder político e judicial existentes, pois são elas que causam o sofrimento injusto. O papel da Igreja, neste cenário, é o de ter uma actuação denunciadora e libertadora dos povos, permitindo-lhes, ulteriormente, abrirem-se ao anúncio amoroso de Deus que a própria Igreja vive e veicula. E isto, embora a esperança, segundo este teólogo, não esteja na Igreja, mas, utopicamente, no povo mais humilde, o qual é o único que dá verdade à existência da Igreja, à práxis do estado e à ética das leis.

O perigo decorrente disto era manifesto. Apesar das negações de Metz, Joseph Ratzinger teve prontamente a lucidez de referir que a posição de Metz se desencaminhara da verdade da Verdade e que, acaso vingasse, traria a política, e não Cristo, para o âmago da Igreja. Mas não apenas a política em geral, mas a que estivesse mais em voga entre o Zeitgeist dos intelectuais, (que, na ocasião, idolatravam o marxismo). E isto, apesar de, como se vê logo em Introdução ao Cristianismo, Ratzinger nunca ter estado menos convicto do que o seu colega, por vezes estranhamente paternalista e naïf para quem advogava uma «mística de olhos abertos» (há outra?), no que concerne a quatro pontos capitais relacionados com a ação do Heilige Geist.

Primeiro, com o não se poder resignar a uma sociedade que, pela padronização de baixo padrão, deitava fora a Deus (primeiro e último garante da liberdade, do valor, da dignidade, do sentido e do amor que atrai). Depois, com o de se dever rejeitar todo o Cristianismo burguês, rico e tradicionalista, mas alheado da compaixão e do convidar as pessoas ao caminho árduo do amor que se faz pobre no dar-se. Por fim, com o ser vital operar mudanças a nível, quer do diálogo com os filhos do Iluminismo, quer da reflexão de uma “teologia da história” que não negligencie nem a vertente política, nem a atenção aos mais frágeis, pobres e injustiçados.

Ratzinger sentiu-se sempre confortável com o facto de a Igreja, enquanto Corpo de Cristo em peregrinação como Povo, dever ser um organismo carismático e hierárquico de crítica (religiosa) racional da sociedade e até da religião. Também jamais deixou de sustentar a necessidade da interdependência entre a religião e a sociedade, mas em que aquela fornecesse a esta a sua base objetiva inalienável. A saber: as raízes espirituais da humanidade e a liberdade desta no seio de um estado, pluralista e neutro, que permitisse a declaração pública das convicções decorrentes da verdade mais nuclear do Cristianismo: Deus só é Amor.

O que ele não desejava, era, isso sim, que se acabasse por instrumentalizar a Igreja, e a mensagem da Mensagem de que ela é depositária (e fora da qual não se vê a luz), para banais fins políticos. E esta realidade, fruto, seja de um excessivo otimismo rahneriano acerca do que a política poderia lograr quando deixada entregue só a si mesma, seja de uma lógica de conluio pecaminoso com o mundano (por sinal de pendor usualmente mais esquerdista), que mais não é do que o Mundo ferido pelo nosso egoísmo e, seguidamente, feridor da nossa autenticidade.

Segundo Ratzinger, a evangelização não poderia identificar-se com um qualquer ativismo político. Muito menos aquele que, exacerbado nas suas posições a tenderem para a cegueira, interpretasse a realidade desde o materialismo marxista e, a par, nela estivesse disposto a intervir através de modos violentos. Modos esses conducentes, quais traidores da liberdade, a uma escravidão degradante. Ocorre que foi isto mesmo o que acabou por acontecer.

Discípulos latino-americanos mais ou menos diretos de Metz, que viveram no meio da faustosa Igreja na Alemanha, incarnaram (não com rigor, mas com radicalismo) o seu pensamento nos seus contextos de proveniência. Acabaram por surgir, assim e no meio de uma legítima teologia da libertação evangélica, os exageros que deformaram a identidade de Deus, de Cristo e da Igreja Católica. Isto fez com que esta parecesse uma extensão dos ideais comunistas, como ocorreu na Nicarágua com, por exemplo, um dos revolucionários e configuradores ideológicos políticos do movimento sandinista e mentor de Daniel Ortega: Ernesto Cardenal.

Inquietos com esta situação, e ávidos de impedirem que os países a Sul de si se tornassem, pela Igreja Católica assim distorcida, em fulcros soviéticos, diversos governos dos EUA deram cornucópias de dólares. E deram-nas, quer a movimentos evangélicos, para “sugarem” o peso religioso da Igreja Católica, quer a grupos militares e paramilitares contrarrevolucionários, os quais, estando do lado das grandes oligarquias familiares de direita que usualmente detinham o poder, se opunham a toda a mudança capilar e pacífica intentada pela Igreja Católica.

Esta, em geral, colocou-se ao lado dos pobres involuntários. Milhares de padres, leigos, religiosos e religiosas fizeram-se, voluntariamente, tão ou mais pobres do que aqueles, para, desse jeito, os assistirem religiosamente e lhes darem os meios de fazerem ouvir a sua voz. Todavia, e além disto, não foi mais longe do que apontar caminhos para a superação político-económica da pobreza. Já os movimentos evangélicos, com o dinheiro maciço que iam recebendo dos EUA, não se coibiram de se imiscuírem ostensivamente na política, nem de, por um certo modelo de proselitismo que o Catolicismo rejeita linearmente, tirarem da pobreza aqueles mais necessitados que, de um modo psicologicamente inteligível, a eles aderissem.

É neste enredado magma, derivado dos debates de novecentos acerca da “teologia política”, que se insere a atual situação dramática do Catolicismo na Nicarágua, tão bem descrita há dias pelo padre Portocarrero. Uma que pode ser resumida ao se querer impedir a Igreja de ser Igreja, fruto da mistura do comunismo com as notas verdes dos EUA (também trocadas entre os detentores máximos do regime e os movimentos evangélicos). Uma para a qual, com pena, não vejo uma solução fácil, apesar das evangelicamente corajosas palavras e ações, seja dos seus fiéis (leigos e clero por igual), seja do Papa Francisco e da diplomacia vaticana.