Estimo que pronunciar-se sobre algo sem deixar que o tempo o madure possa ser sempre precipitado. Esta minha perspetiva permitiu-me não cair em posições extremadas sobre o documento “Fiducia supplicans” [FS], que se leram inclusive neste órgão de informação.

Não irei tocar em teclas novas acrescentadas a um piano, mas tocarei nelas segundo uma ordem diferente, em busca de um pouco de originalidade. Assim, e antes de avançar com o meu parecer pessoal acerca desta temática numa segunda parte de este ensaio, apontarei o que disseram seis pessoas sobre a FS. A saber: 1.- um calvinista dos EUA; 2.- um Católico africano da República Democrática do Congo; 3.- um Ortodoxo Russo; 4.- um Católico Europeu da Alemanha; 5.- um cristão Copta do Egipto; 6.- e, por fim, um Católico dos EUA. Faço notar que me limitarei a apontar essas opiniões, não entrando em diálogo com elas senão indiretamente e naquele meu mencionado parecer conclusivo.

1 O pastor calvinista James White, pegando em tal documento, afirma que ele é mais uma manifestação da Babel dos ensinamentos diacrónicos e sincrónicos teológicos católicos, que fazem com que nem os Bispos de Roma, muito menos o mais comum dos católicos, conheçam os conteúdos materiais da sua fé. Por outras palavras: não conheçam no que devem acreditar devido às sucessivas «mudanças» nesse âmbito. White também sustém que não é o “somente a Escritura” que fomenta a anarquia doutrinal, mas a lealdade temerosa ao Papa e a hipótese da evolução nos dogmas, admitida por este pastor como aceitável em alguns dos seus dados avançados por John Henry Newman.

Mais ainda: este pensador diz que o que é abençoado deve, além da intenção dos participantes, ser objetiva e positivamente abençoável em si mesmo – algo que ele afirma ser impossível na bênção de “casais” (palavra por si tida, e sem mais, como sinónimo de “uniões”) de pessoas do mesmo sexo. E isto, porquanto oposta ao desígnio divino biblicamente testemunhado, sendo, assim e juntamente com o não fazer qualquer apelo ao arrependimento ou à conversão, a falha teológica original e final do «viscoso» (devido ao seus sentidos equívocos) texto FS.

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2 Por seu lado, o Cardeal Fridolin Ambongo Besungu (na qualidade de presidente do Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagáscar) sustentou (antes e após uma reunião a três entre si, o Papa Francisco e o atual Prefeito do Dicastério da Doutrina da Fé, em que ditou a este Prefeito o que deveria dizer para se fazer explicar aos católicos africanos) que a FS era uma forma de «colonialismo cultural» «imperialista». Ou seja: algo imposto sem «qualquer sinodalidade» e absolutamente contrário a todas as formas de compreensão éticas católicas e culturais moldadas anteriormente em África na sequência dos textos bíblicos e do magistério da Igreja Católica.

Para ele, teria sido necessário preparar com um maior discernimento, e em clima de sinodalidade, o que viria a ser publicado, sustendo em derradeira análise e em deferência ao sofrimento causado ao Papa Francisco pela reação dos católicos Africanos, que o problema de fundo não era tão somente teológico quão também de comunicação. E comunicação a dois níveis: na ausência de uma explicação dialogante prévia à intenção da publicação do texto que concentra a nossa atenção e na «subtileza» da linguagem usada no mesmo. Dito isto, não nega o sofrimento causado àqueles católicos pela FS, embora Ambongo diga que, depois do aludido texto pensado a “três cabeças”, a crise já está a serenar em África.

3 Hilarion Alfayev, responsável máximo da Comissão Sinodal Bíblico-Teológica do Patriarcado de Moscovo (expressando-se no desempenho deste cargo e já não apenas veiculando opiniões pessoais), menciona que as palavras da FS manifestam uma explícita separação de águas face à Tradição cristã e ao consenso teológico anterior, afirmando que nenhum Papa, até Francisco, as aprovaria. E isto, devido à ausência de referências ao sacramento da Penitência, facto que poderá dar a entender que, segundo a FS, uma forma de vida pecaminosa não é obstáculo à comunhão com (a vontade de) Deus.

Por outro lado, sustém que a bênção de casais do mesmo sexo é «antitética à moral Cristã» e que, parecendo ser equacionada à ambígua expressão «em situação irregular» (que não é forçosamente sinónima de «casais do mesmo sexo»), não é minimamente clarificada, deixando no ar a ideia de que quem vive nessas duas circunstâncias não o faz voluntariamente. Aponta ainda que a possibilidade de se ajudar espiritualmente um sujeito requer, no mínimo, a intenção desse sujeito abdicar da sua situação pecaminosa. Alfayev adverte ainda que o texto em análise parece querer normalizar, numa «mudança radical», algo até agora tido como teológica e moralmente diferente.

4 O Cardeal Gerhard Müller foi uma das vozes católicas de maior vulto mais críticas à FS. Para ele, as bênçãos a “casais” tratadas em tal documento são contrárias à intenção, manifestada nesse próprio documento, de preservar a doutrina católica sobre a sexualidade e o casamento, com o risco de, seguindo-se o axioma «lei orante, lei crente», uma prática «espontânea» aparentemente anódina possa vir a tornar-se numa norma doutrinal. E isto, por mais que, depois e numa assunção das suas contradições internas, se tenha deixado de falar em casais, mas em abençoar “pessoas” que estão «juntas» – algo que, no parecer deste teólogo, não muda em nada a situação, porquanto a relação que as une, e fundava o semanticamente mudado “casal”, não é diferente do abençoar essa união.

Müller sustenta igualmente que, face à linguagem anfibológica do texto da FS, a possibilidade de haver uma intenção maior do que aquela que está presente no documento não é, de todo, uma impossibilidade, antes sim uma realidade com consequências gravosas (que poderão conduzir «logicamente» a uma heresia não explicitamente presente na FS). E este facto, nomeadamente porque dá a entender que o magistério de um Papa pode sustentar a legitimidade moral e doutrinal de um comportamento contra os princípios hermenêuticos, teológicos e doutrinais que esse mesmo Papa precisa de garantir.

5 Tawadros II (como responsável máximo do Sínodo da Igreja Copta, e após consulta com outras confissões cristãs orientais) aprovou um documento em que fica claro que a noção de uma “bênção pastoral não litúrgica” é um real desenvolvimento na compreensão eclesial de “bênção” e que, mesmo que isso seja válido, é contrária à posição da Igreja Copta, baseada na teologia da «Santa Bíblia», acerca da imoralidade das relações homossexuais. É ainda dito que abençoar um pecado (subentenda-se: a união entre duas pessoas que formam um casal homossexual ou em situação irregular) é inaceitável.

Para tal documento, a união entre casais de pessoas do mesmo sexo é moralmente análoga à de quem, sendo heterossexual, vive com um parceiro fora do matrimónio, com a agravante, porém, de ser mais grave do ponto de vista espiritual. Mas vai-se mais longe, na medida em que rejeita a ideia de que diferentes culturas possam ter ensinamentos e práticas diferentes «dentro de uma “liberdade humana absoluta” que causa a destruição da humanidade», porquanto a Palavra de Deus lida à luz de Jesus Cristo é intemporal e válida para todos os locais.

6 Já o Bispo dos EUA Robert Baron (responsável da Comissão sobre os Leigos, o Casamento, a Vida Familiar e a Juventude da Conferência Episcopal do dito país e na condição de ser esse mesmo responsável) afirma que a FS não comporta nenhuma mudança no ensinamento da Igreja face ao casamento e à sexualidade. A própria bênção de quem vive em situações irregulares não implica a aprovação das mesmas, antes uma comunicação da misericórdia divina para os ajudar e fortalecer.

Este teólogo refere que tudo o que está na FS é absolutamente congruente com o magistério do Papa Francisco, o qual, não aceitando vitimar quem quer que seja na praça pública da hipocrisia, sempre afirmou que, inclusive aquele que não logra viver segundo os ensinamentos morais da Igreja, não deixa de ser estimado e amado por Deus, sendo sempre convidado a pedir-Lhe a receção objetiva do perdão.