Efemérides redondas são quase uma conditio sine quanon para que se façam, entre nós, grandes campanhas de estudo, edição e exposição. O que haveria de ser um trabalho contínuo de exame, conhecimento e avaliação do passado acaba por precisar dos lembretes de almanaque para pôr em marcha a pesada roda das instituições culturais, habituadas à pasmaceira e à inércia, sem culpa justificadas com a endémica e proverbial falta de meios. E é assim, só assim ou quase só assim que das reservas dos museus, das salas dos coleccionadores ou das gavetas dos arquivos saltam para as paredes duma galeria os quadros e os desenhos que dão face a um pintor, que parece nunca ter existido porque não temos exposições permanentes de arte feita por portugueses que mostrem aos nossos filhos — ou aos muitos turistas que nos visitam — um pouco mais e melhor o que somos e fazemos.
A exposição do centenário de António Dacosta, há dias inaugurada no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, é um magnífico exemplo do benefício dessas campanhas. Mostra-nos o valor da lição que dá permitir ver panoramicamente, ao vivo e a cores, uma obra que julgávamos conhecer bem, mas à qual quatro anos de pesquisas vieram agregar um lote de quadros dispersos, pouco ou nunca exibidos, um atrás do outro — na montagem lúcida, lúdica e orgânica dirigida por José Luís Porfírio — aumentando em nós o fascínio pelo pintor de Antítese da Calma, Cena Aberta e Festa, que regressou, quarenta anos depois, com o inexcedível Dois Limões em Férias, os semidiscos representando o céu da ilha açoriana em que nasceu, e mais, muito mais… Na inauguração, era patente em muitos rostos a felicidade do reencontro com a obra plástica deste pintor único e fascinante, que encantou para sempre a minha geração com o seu imaginário de «fino humor e claro desejo» (João Pinharanda dixit). Os nenúfares de Monet são em Dacosta uma… Sereia (a minha preferida é a da colecção Millenium BCP).
Apresentada num espaço expositivo cuja versatilidade tem sido contestada, a obra de António Dacosta tem no catálogo raisonné organizado por Fernando Rosa Dias a sua indispensável peça de resistência. Em linha com o que mais avançado se faz actualmente, esse catálogo digital, de generoso livre acesso e pioneiro absoluto em Portugal, é afinal de contas também o convite a um work in progress sobre a vida e obra do artista, uma vez que permitirá incorporar a qualquer instante e com recursos mínimos os progressos fornecidos por pesquisas futuras. A potencialidade dum catálogo raisonné em linha é, simplesmente, fascinante.
Pense-se, por exemplo, em aspectos da vida e obra de António Dacosta que ainda não foram devidamente clarificados ou conhecidos. Haverá vários, como é natural, mas nenhum tão relevante como o da sua actividade de crítico de arte, só reconhecida quase dez anos após a sua morte, no volume Dacosta em Paris (Assírio & Alvim, 1999, 413 pp.). Iniciada em 1943, no Diário Popular fundado pelo seu confrade António Pedro e na Panorama do poeta Carlos Queiroz, reincidiu anos depois, já de Paris, mas para o grande jornal brasileiro Estado de São Paulo, durando duas décadas e meia, de 1955 a 1980 — grosso modo, o longo interegno em que não pegou em pincéis.
Não sei explicar porque foi que, durante todo esse tempo, nenhum jornal português, ou desde 1971 a Colóquio Artes dirigida por José-Augusto França, reparou na qualidade dos juízos deste pintor sobre os seus pares, e além disso um comentador privilegiadíssimo da cena parisiense, quando Alberto de Lacerda o fazia admiravelmente de Londres, e outros portugueses cronistas do Estadão (toda uma época dourada!) se replicavam regularmente por cá. Será que tudo terá de ser deixado à «placidez açórica» de Dacosta? A própria edição da Assírio & Alvim, além de tardia e de ser apenas uma antologia, tem debilidades que à época enfureceram João Pinharanda, entre as quais a ausência de uma considerável fatia temporal dos textos de Dacosta (e diria eu, um índice onomástico e uma bibliografia completa). O catálogo raisonné pode, se quiser, devolver-nos essa parte omissa.