Terá sido em Greccio, na província de Rieti, no Lácio, na véspera de Natal de 1223, que S. Francisco inventou o primeiro presépio. Era um auto natalício, representando o primeiro dos Natais, com toda a criação a louvar o Criador feito homem, o Deus Menino na manjedoura.
Os frescos de Giotto, na Basílica de Assis, representam, assim, o mistério da Encarnação, o mistério que irrompe no tempo e rasga o tempo, condição sine qua non de todos os outros mistérios da Fé; o mistério que, nos séculos seguintes, vai servir de tema aos grandes mestres do Ocidente, crentes e não crentes.
Mas a história recente do Natal – antes de se tornar uma oca e errática azáfama mercantil; a história e o imaginário do Natal como celebração em família da Sagrada Família, vai ficar muita marcada pelos anglo-saxónicos.
Ainda que, durante a Revolução Inglesa, Cromwell tenha proibido a festa, por cheirar a “papismo” e a excessos pouco puritanos, Carlos II, o Merry King, apressou-se a restaurar a celebração. Depois, com os vitorianos e, acima de tudo e de todos, com Charles Dickens, o imaginário do Natal cristão ganhava uma dimensão social, caseira, próxima, de consciencialização e redenção pessoal.
Chesterton, num famoso ensaio sobre Dickens, nota que o conforto e a harmonia do Natal do escritor vitoriano vivem precisamente do “contraste entre o calor e o vinho dentro de casa e o Inverno e a neve e a chuva lá fora”.
Washington Irving, escritor americano da primeira metade do século XIX, nos seus Sketches, reflectia já esses “natais ingleses”. Dickens conhecia Irving e a sua escrita e os dois encontraram-se e saudaram-se efusivamente na visita de Dickens aos Estados Unidos em 1842.
Irving popularizara na América a figura de S. Nicolau, numa história sobre o naufrágio de um barco holandês em Manhattan e a visão de um dos tripulantes do “bom S. Nicolau, aparecendo sob a copa das árvores, guiando um carro carregado de presentes para as crianças”. No conto, é S. Nicolau que diz aos holandeses para se radicarem na Ilha de Manhattan, tornando-se, assim, o fundador da cidade. De resto, Irving foi secretário executivo da Saint-Nicholas Society of the City of New York até 1841. Era um escritor prolixo e os seus contos foram determinantes para introduzir na América a tradição do Natal, do Natal cristão, como festa da família.
Já a árvore de Natal parece ser de origem alemã, aparecendo pela primeira vez na Rússia em 1817 com a imperatriz Alexandra, mulher de Nicolau I. Foi também Alexandra, filha de Frederico Guilherme III da Prússia, que introduziu na aristocracia russa o costume de trocar presentes pelo Natal. Foi igualmente um alemão, o príncipe Alberto, marido da rainha Victória, que levou a árvore de Natal para Inglaterra.
A canção de Natal de Dickens
Mas o pai fundador do “tempo de Natal”, foi Dickens. Apesar de uma referência anterior nos Pickwick Papers, é em A Christmas Carol que um certo imaginário do tempo de Natal nasce no Ocidente cristão; um imaginário marcado pelo tempo atmosférico – o frio e a neve, que atingem mais os pobres que os ricos e os remediados; e pelo tempo social e individual – a solidão e a maldade do velho Scrooge, avisado em sonhos das consequências do seu egoísmo, e a alegria simples dos pobres e remediados.
Scrooge diz secamente ao sobrinho Fred, filho da sua irmã Fan, que o Natal é “a humbug”, “uma farsa”, mas Fred, empolgado, contradi-lo, definindo o tempo de Natal como “a good time; a kind, forgiving, charitable, pleasant time”, sobretudo por ser um tempo em que “os homens e as mulheres abrem os corações livremente e pensam nas criaturas abaixo deles como companheiros de caminho para a sepultura”. Ebenezer Scrooge não se convence com esta apologia de Fred feita de “fellow-passengers to the grave”, mas os eloquentes espíritos natalícios que o visitam de noite vão elucidá-lo sobre as oportunidades perdidas no passado, a verdade do presente e o castigo futuro, levando-o ao arrependimento.
Dickens foi um crítico da Inglaterra vitoriana, a Inglaterra da industrialização, que retratou em Hard Times; e a crítica repete-se em A Christmas Carol, onde os maus são ricos, agiotas e exploradores, e os bons pobres, remediados e explorados. Nesta crítica, está implícita a condenação do Liberalismo e do seu utilitário “Enrichissez-vous”, que reduz ao lucro resultante da exploração dos pobres a procura e o “direito à Felicidade”.
Dickens é um crítico da ética capitalista e da “mão invisível”. Nos seus romances, o capitalismo liberal sem freios religiosos, éticos ou legais, surge como um sistema em que só os poderosos e os ricos podem ser livres e em que o poder e o dinheiro dão as mãos contra os pobres.
No entanto, na sua canção de Natal, os símbolos da riqueza e da miséria são individuais – o patrão rico, explorador, sem remorsos, Ebenezer Scrooge, e o seu empregado, Bob Cratchit. Scrooge, além de explorar Cratchit, exibe uma moral darwinista, em que os pobres são “deplorable” e totalmente dispensáveis quando deixam de ser úteis como instrumentos de produção.
Dickens, pouco antes de escrever A Christmas Carol, tinha visitado Manchester e contemplado a condição dos trabalhadores; tinha também uma memória viva da humilhação familiar, de quando o pai estivera preso por dívidas. Mas o autor de David Copperfield não se envolve nunca numa diatribe social colectiva ou numa apologia da luta de classes, seguindo antes um caminho de consciencialização e arrependimento pessoal, cristão.
Scrooge, que o leitor tem razões suficientes para detestar, vai ser salvo por uma sucessão de visões do passado, do presente e do futuro, guiada pelos espíritos do Natal; visões que vão trazer ao egoísta e despótico capitalista a outra face do seu mundo e do mundo: o amor de Belle trocado pelo amor ao dinheiro; o seu sócio Marley, errático e acorrentado, dando-lhe a imagem do que lhe pode vir a suceder se não se arrepender; a alegria familiar dos sobrinhos, com Fred, apesar de tudo, a defendê-lo dos que o atacam; o pequeno Tim, na casa dos Cratchit, condenado ao seu último Natal; e, finalmente a imagem da sua própria morte, o horror do fim ante a alegria dos seus devedores.
Quando acorda na manhã de Natal, Ebenezer Scrooge é outro homem, arrependido e redimido pelas visões da noite.
O Natal dos russos
Dickens foi conhecido e popular na Rússia entre os anos 40 do século XIX e a revolução de 1917. Em 1849, no jornal político-literário Sovremennik (Contemporâneo), fundado por Alexandre Pushkin, o autor de David Copperfield era descrito como “o mais notável novelista europeu contemporâneo”, pelo sentido humanista ou humanitário das suas histórias e a sua natural simpatia pelos danados e humilhados na “puritana Inglaterra”.
Os grandes escritores russos também escreveram sobre o Natal: Tolstoi contou o Natal de um velho sapateiro que queria dar ao Menino Jesus um par de sapatos; Dostoievsky inventou a história do menino pobre ao pé da árvore de Natal, símbolo de todos os meninos pobres, que Cristo recebe na sua Luz; e Chekhov conta um Natal em que uma mãe analfabeta pede a um tal Yegor que lhe escreva uma carta à filha, que partira há quatro anos para São Petersburgo.
Antes deles, em 1832, já Nicolau Gogol, aquele que Vladimir Nobokov considerou o primeiro entre os escritores russos, tinha publicado um conto da véspera de Natal, passado em Dikanka, uma aldeia da Ucrânia. No conto Véspera de Natal, o ferreiro Vakula, que ama perdidamente Oxana, é vítima do Diabo, que rouba a lua, com a cumplicidade da mãe do ferreiro, a bruxa Solokhy, para atormentar o pobre e apaixonado ferreiro, um homem bom e um piedoso cristão.
Gogol, um agnóstico em procura atormentada da Fé, foi um desses autores com o sentido da presença adormecida, dissimulada, mas permanente do Mal em coisas aparentemente sem importância – coisas “Poshlost” – como em O Capote.
Os natais na Rússia acabaram em 1917, com a revolução bolchevique, que fechou igrejas, matou e prendeu sacerdotes e procurou acabar com o Cristianismo na URSS. A partir de 1928, depois de uma tentativa de substituir o feriado de Natal por uma festa do Komsomol (a Liga da Juventude Comunista), o 25 de Dezembro passou oficialmente a ser um dia normal.
Entre os horrores da Fome e do Terror, em 1935, Estaline quis restaurar um simulacro de “Natal”, com um Avô do Gelo soviético, Ded Moroz, e a sua neta Snegurochka, a Menina da Neve, que traziam presentes para as crianças socialistas. Isso já não no Natal, um mito burguês que não tinha nada a ver com o Socialismo Científico, mas no princípio do Ano, para comemorar o Ano Novo. Não terá servido de muito.
Curiosamente, por uma destas coincidências misteriosas da História, a União das Repúblicas Socialistas acabou no dia de Natal de 1991. Gogol faria um grande conto sobre o tema.