Nos EUA, uma terra de excessos, há um desporto ilegal e pouco conhecido: trata-se de fazer o percurso entre Nova Iorque e Los Angeles, de carro, no menor tempo possível. O recorde foi batido por três moços, há umas semanas, com  27,5 horas, o que dá uma média superior a 160 km/h. Suponho que não ficará por aqui: o carro tinha 75.000 km, salvo erro, era um carro de produção e, excepto pela electrónica embarcada e gadgets diversos, não se distinguia de outros topos-de-gama (para usar a expressão que jornalistas invejosos consagraram) com um cunho desportivo.

Tudo contra a lei e arriscando multas astronómicas e penas draconianas: naquelas paragens trancafiam as pessoas por pecadilhos, os juízes tomam-se por deuses, os polícias por juízes, e os cidadãos law-abiding por polícias, nunca ninguém tendo podido demonstrar se o sistema de justiça é assim porque a sociedade é violenta, ou se a violência das instituições explica uma parte da violência da sociedade. Coisas lá deles, em todo o caso.

Por cá, que eu saiba, ainda ninguém se deu ao trabalho de fazer a mesma coisa entre o Porto e Lisboa, ou entre o Porto e Faro. Se bem que, tanto num como noutro destes percursos, tivesse umas histórias para contar, sem electrónicas nem recordes, que não conto por receio de causar danos ao mesmo tempo à minha reputação de pessoa amante da lei e da ordem e à minha credibilidade.

Há uns dias, três moços morreram em Lisboa numa brincadeira a 300 km/h. O detalhe da velocidade foi glosado abundantemente pela imprensa, mas no troço em que morreram, à hora a que morreram, na marca do automóvel em que morreram (o preço, senhores, o preço do carro, foi pacificamente considerado como circunstância agravante – num Renault Clio sempre era uma morte mais socialmente tolerável), semelhante velocidade é inverosímil.

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Que o diabo os leve: a testosterona incita os jovens a fazerem loucuras; não se percebe o que fazem no mercado automóveis que excedem amplamente as velocidades permitidas; é impossível, mas seria desejável, controlar de alguma forma as velocidades acima do permitido de todos os veículos; e estas mortes são a demonstração de que há ainda muito caminho a percorrer pelas autoridades de modo a que se adoptem atitudes civicamente responsáveis, a mal porque a bem há sempre quem fure.

Certo? Errado. Porquanto:

  1. As diferenças de segurança activa entre automóveis são tão grandes, consoante a marca, a idade, o preço, o estado de conservação, as características, que a imposição de um limite igual para todos não pode senão ser, e de facto é, um nivelamento por baixo, que os que podem e sabem com frequência ultrapassam, mesmo inadvertidamente;
  2. Não há limites de velocidade diferentes para bom e mau tempo. E todavia as diferenças de condições de aderência com chuva e tempo seco são enormes. As polícias, porém, têm tendência a, com chuva, não fazerem operações, possivelmente porque os autos de notícia ficam esborratados;
  3. Todos os condutores aprendem a estacionar entre duas árvores, o Código e a controlarem a embraiagem sem solavancos. O que fazer em situações de perigo não aprendem. Ou seja, a formação consiste na escola primária – ensino secundário nunca, que para ir daqui ali o primário chega perfeitamente e somos todos iguais, mesmo que na ignorância.
  4. Todos os automóveis são hoje mais seguros do que alguma vez foram, para velocidades iguais, e todos incorporam mecanismos de segurança activa (travões de disco, suspensões inteligentes, direcções assistidas, ABS e um imenso etc.) que fazem com que, às velocidades legais, e salvo distracções, os acidentes sejam improváveis. Minorados também nas suas consequências, no que intervêm dispositivos de segurança passiva, como airbags, cintos de segurança ou habitáculos indeformáveis, do que aqui não curo;
  5. A maior parte das inovações em matéria de segurança activa não resulta de intervenções dos poderes públicos: vem da competição automóvel, da competição entre as marcas, da inovação, da criatividade e do mercado para infractores.

Atentemos nisto: mercado para infractores. Não faz nenhum sentido produzir automóveis que nunca, mas nunca, possam ser utilizados em situações de velocidade fora dos limites legais, hoje generalizados em todo o mundo. Continuam porém a produzir-se para satisfazer vaidades, por um lado; mas também porque os fabricantes sabem que os condutores jogam ao gato e ao rato com as autoridades rodoviárias.

Jogam cada vez menos porque os meios de controle e repressão têm vindo a acentuar-se. E disto já vemos consequências: há cada vez mais SUVs – não são verdadeiramente desportivos, apesar do nome, proporcionam maior sensação de velocidade sem que ela seja verdadeiramente elevada, e, apesar da configuração de tanques, são menos seguros do que as limousines equivalentes.

Se as autoridades insistirem, a seu tempo os fabricantes competirão pelo luxo, as linhas, as comodidades, a segurança passiva – mas pela segurança activa não porque não será um factor diferenciador.

Quer dizer que os infractores, até agora, têm protegido os cumpridores – estes conduzem carros muito seguros porque não foram feitos para eles.

Pode ser que nada disto interesse no futuro: talvez a evolução tecnológica venha a impor que circulemos sem condutor, a alta velocidade porque a tecnologia permitirá que o façamos em segurança.

No passado ficarão os que morreram porque eram chanfrados, e cuja morte não foi inútil porque garantiu que muitos outros nunca tivessem acidentes.