Estamos no ano de 1985, o PSD acaba de sair vitorioso das eleições recentemente  realizadas, encabeçado pelo jovem primeiro-ministro Cavaco Silva, conquistando 88  assentos parlamentares, com 29,87% dos votos. No dia seguinte às eleições, dia 7 de  outubro, Cavaco Silva tem um trabalho difícil, complexo, de negociação e diálogo com  várias forças políticas, uma vez que o seu partido ficou longe da maioria absoluta, que  se alcança aos 126 deputados. O CDS apetrechou 22 deputados na eleição de 6 de  outubro desse ano, somando apenas 110 deputados com o PSD, sendo, por isso, necessário procurar entendimentos mais alargados no parlamento. O PRD (Partido  Renovador Democrático), um partido que se define como um partido reformista, de  ideais sociais democratas, fundado por Ramalho Eanes e Hermínio Martinho, pode deter  a chave que desbloqueará o impasse eleitoral e a incerteza política vivida no país, uma  vez que conseguiu eleger uns extraordinários 45 deputados, consolidando-se  firmemente como terceira força política, com 17,92% dos votos.

O partido Eanista congregava várias personalidades moderadas, com uma matriz  maioritariamente progressista, muitas delas vindas de uma cisão de alas mais  moderadas do Partido Socialista e foi uma novidade eleitoral inesperada, resultando  numa quase tripartidarização do regime, explicando-se este resultado pela desilusão e  descontentamento sentidos pelos eleitores, após um governo errático e, diga-se, de  difícil governação por parte do Bloco Central.

O Partido Socialista, liderado por Almeida Santos, tem o seu pior resultado de sempre,  20,77% dos votos, arrebatando apenas 57 deputados, quase empatando com a terceira  força política, uma verdadeira hecatombe eleitoral nas hostes dos socialistas.

Cavaco Silva e o PSD encontravam-se numa situação de encruzilhada parlamentar de  difícil resolução: muitos julgaram ser impossível o governo manter-se em funções  durante muito tempo, pairando a expetativa de que o ciclo político iria encerrar-se quase  antes de se iniciar.

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O líder do PSD tentou dramatizar a ideia de estabilidade política e cavalgar a narrativa  de que o país necessitava de serenidade para sair de uma recente crise económica,  resolver muitos dos problemas de carácter social enfrentados pelos portugueses,  nomeadamente em matéria de habitação, pobreza e escassez de infraestruturas.

Mediante todo esse panorama, Cavaco Silva consegue manter-se no governo durante  dois anos por via da aprovação dos seus orçamentos, assegurada pelo PRD. Contudo, em  oitenta e sete, o partido dos Renovadores decide apresentar uma moção de censura,  precipitando a queda do governo do PSD. Os Renovadores tentaram propor ao  presidente da República, Mário Soares, um governo alternativo, integrado pelo próprio  PRD, PS e pelo PCP, formando uma espécie de “geringonça do jurássico”, contudo, tal  plano não conseguiu ir por diante, caindo por terra, pela rejeição de Soares.

Convocadas as eleições, e perante esse cenário de ingovernabilidade, os resultados,  como muitos já sabem, foram arrasadores, originando, à data, a maior votação de  sempre conquistada pelos Sociais Democratas desde o 25 de Abril, uns espetaculares  50,22%, conquistando com estrondo 148 assentos parlamentares, ultrapassando tranquilamente a necessária maioria absoluta.

Moral da história: Tradicionalmente, quem faz cair governos antecipadamente sem uma  grande justificação é fortemente penalizado nas urnas. Não há nenhum indício de que  isso tenha mudado, mesmo atualmente.

Trinta e nove anos depois, avançamos para o dia 11 de março de 2024, dia seguinte às eleições. Desse rescaldo, retiram-se ilações imediatas. A subida em flecha do Chega,  alcançando pouco mais de 18% dos votos, uma forte erosão da base eleitoral socialista  que consegue um resultado na casa dos 28,7%, um dos piores resultados do partido,  abaixo do patamar habitual dos 30%, um definhamento da esquerda radical, onde o PCP  avança aceleradamente em direção ao abismo da irrelevância, conquistando apenas  quatro deputados, o seu pior resultado de sempre e onde se observou uma vitória muito  estreita da AD, conquistando uma votação perto dos 30%, demonstrando que não  alcançou o objetivo a que se propunha, a sua “onda laranja de mudança”.

Detetamos, em relação a 1985, algumas semelhanças políticas no país, deparando-nos  novamente com uma tripolarização do regime e uma complexa geometria parlamentar,  espoletando um crescendo de tensões políticas, estimulando um clima de polarização  nas ruas, nas redes sociais, de barricada, onde os extremos tentam capturar os mais  moderados, agarrando com teatralidade o mantra do “Ou estão connosco ou estão  contra nós”, um clima onde a direita e alguma da esquerda moderada se esforçam para  interpretar, de forma séria, os resultados eleitorais, não ostracizando, insultando ou  injuriando quem votou no partido de André Ventura, contrariamente ao que tem sido  propalado pelos partidos radicais de esquerda.

Não falar de algumas bandeiras que têm sido monopolizadas pela direita populista e  radical, como a temática da imigração, é oferecer um dos maiores trunfos eleitorais ao  Chega. Deixarmo-nos capturar pelo receio de sermos apelidados de racistas, xenófobos  ou rotulados como extremistas, quando apenas se pretende debater aprofundadamente um assunto com relevância, é vergarmos os nossos ideais em prol de uma espécie de  intimidação social, que extravasa o razoável.

Quem é que não se recorda da famosa expressão: “Oh inclemência! Oh martírio! (…)”, do popular filme português “O Pai Tirano”? Essa frase espelha bem a postura de  menorização do eleitorado, que a maioria da esquerda adota, parecendo sempre haver uma indisponibilidade para esvaziar, de facto, o partido de Ventura através do combate  de ideias. Em vez disso optam por recorrer à ideia da perplexidade coletiva, a reboque  da designada agenda woke, fazendo de vários temas tabu, recorrendo à tese da  moralização da política.

A roupagem de uma esquerda lutadora contra todo e qualquer extremismo não é  congruente com o tipo de campanha que se foi fazendo, bastante reativa, tendo por base, quase unicamente, a constante crítica do posicionamento ideológico dos partidos, onde, apenas por serem conotados com o centro direita, estes já iriam desencadear  retrocessos sociais ou civilizacionais. Em vez de se debater com transparência soluções  concretas para os problemas do país, a esquerda prefere agarrar a prerrogativa de que a  direita democrática está automaticamente associada a tudo o que é mau para a nação,  usando inclusivamente temáticas como a da imigração, como armas de arremesso  político, tentando colar a AD e a IL, ao partido de Ventura, fomentando, uma vez mais o  clima de barricada, contradizendo-se na sua preocupação primordial, de afastar o Chega  do poder.

Mesmo depois do reiterado “Não é não” de Luís Montenegro e da sua demonstração de  abertura e vontade de diálogo com todas as forças políticas, vários membros socialistas  disseram, a priori, que iriam rejeitar o futuro orçamento de Estado (que ainda nem foi  apresentado), o PCP já anunciou uma moção de censura caricata, diga-se, a um governo  que ainda nem existe. Nada disto ajuda a ter um quadro de estabilidade política, focado  em resolver os problemas prementes da sociedade portuguesa, mitigar as preocupações  de todos os eleitores, nomeadamente os do partido de Ventura, que poderá insuflar-se  ainda mais, caso não tenhamos a ousadia de compreender o motivo desse sentido de  voto.

Temos um panorama político com uma geometria difusa, tal qual 1985, onde o partido  que irá governar se encontra dependente de uma terceira força política, todavia, o PRD  não é o Chega. Sociologicamente, os votos destes dois partidos têm, aliás, como únicas  semelhanças, a detenção do voto de protesto, de desilusão para com os partidos do arco  de governação, e o tipo de base eleitoral que é interregional, intergeracional e  interclassista. Ideologicamente, estão praticamente nos antípodas e o partido dos  renovadores foi um epifenómeno, perdendo imediatamente a sua força nas seguintes  eleições, enquanto a corrente política do Chega mostra estar de pedra e cal, implantado  em Portugal, seguindo uma tendência europeia e mesmo mundial.

O recém indigitado Primeiro-Ministro Luís Montenegro poderá adotar um trilho político  equiparável ao do seu “sensei” Cavaco Silva, visto que a geometria parlamentar é também em muito comparável à de 1985. Para isso precisará, primeiramente, de formar  um governo bastante robusto, rodeando-se de membros da sociedade civil,  tecnicamente muito competentes e de figuras de peso político, nas pastas que tenham  maior visibilidade, onde é necessário um combate político mais aceso e imediato.  Adicionalmente, deve aproveitar o novo ciclo de renovação política, promovendo e  prolongando ao máximo o conhecido “estado de graça”, a fim de ir aumentando a sua  popularidade, obtendo maiores taxas de aprovação do eleitorado, pelo menos até ao 1.º  Orçamento do Estado. Caso vença as eleições europeias, a sua primeira prova de fogo, a  sua legitimidade sairá reforçada, uma vez que ainda que esses resultados não sejam  completamente extrapoláveis para uma governação, podem servir de antecâmara para  se lhe medir o pulso.

Montenegro caminha sobre gelo fino e, por isso, deve ter bastante prudência na forma  como vai aproveitar estes primeiros meses que lhe podem servir de tábua de salvação,

tal como ao partido. Terá de mostrar abertura e pluralidade no diálogo e passar a papel  químico a ideia de dramatização que Cavaco promoveu na altura, colocando a pressão  de instabilidade política do lado do PS, acusando-os de colocar as questões partidárias à  frente dos reais interesses dos portugueses, mostrando que um partido do arco de  governação não pode desresponsabilizar-se perante um quadro parlamentar tão  instável, com a extrema direita à perna.

O futuro governo Social-Democrata terá, também, de manter inexoravelmente o seu  “não é não” com o Chega, mas sem queimar pontos de contacto em algumas medidas  cirúrgicas que possam existir, insistindo na ideia de que. caso o partido de Ventura  derrube o governo, não só atirará o país para uma situação de ingovernabilidade, como  também pode atirar o eleitorado para os braços da esquerda.

O PSD tem uma oportunidade única de, ao alcançar o poder, ao governar bem, recentrar se, passando a ser o partido central de regime, servindo de charneira para ambos,  capturando o centro político, caso os socialistas não adotem uma postura cooperante e  dialogante, aproximando-se de agendas mais radicais e estancando a hemorragia que  tem havido também à direita, gerada pela agremiação de pessoas cujos seus problemas  não foram resolvidos, ou até escutados. Veremos se Luís Montenegro terá essa  capacidade para recuperar o elã político do PSD, que há muito se via esbatido, de modo  a que não se perca para sempre, no xadrez político nacional, o bipartidarismo tradicional  (PS-PSD), ou assegure ao PSD o polo do centro moderado de um reformado  bipartidarismo.