O 17 de Novembro é um dia importante para a República Checa. Nesse dia, há exactamente trinta e três anos, teve lugar uma manifestação estudantil originalmente pequena no centro de Praga. Os participantes, incluindo o meu filho, foram brutalmente agredidos pela polícia comunista. Esse comportamento agressivo iniciou um processo de alteração social que ficou conhecido como a “Revolução de Veludo”.
Chegou no momento certo. O comunismo já estava tão fraco que não era capaz nem estava pronto para se defender com eficácia. Digo repetidamente que o comunismo não foi derrotado. De alguma forma, derreteu.
A “Revolução de Veludo” é considerada um marco fundamental da história moderna. Tornou-se o ponto de partida da nossa caminhada em direcção à liberdade, democracia parlamentar e à economia de mercado. E no sentido de uma vida normal. Três semanas depois, fiz parte do primeiro governo pós-comunista e assumi a importante pasta de ministro das Finanças. Essa circunstância deu-me a oportunidade de preparar e organizar uma radical transformação económica, social e política do país.
Mencionar este evento histórico já quase esquecido não é sem propósito. A experiência Checa, tanto antes como depois da queda do comunismo, não deve ser esquecida ou negligenciada. Pode-se aprender muito com ela. Deve tornar-se uma lembrança presente nos nossos actuais esforços para lidar com o momento muito problemático que vivemos da história humana. Devemos estar atentos, mais do que em qualquer altura destes trinta e três anos. Estamos numa encruzilhada. De novo.
O comunismo empobreceu-nos em muitos aspectos. Privou-nos de muitas “normalidades” que os cidadãos de países livres consideram – e sempre consideraram – um dado adquirido. Vivi 60% da minha vida antes do fim do comunismo. Não foi um período curto. Foi uma perda, uma privação, um empobrecimento. Por outro lado, foi uma oportunidade de aprender muito durante essa época. A nossa visão do mundo está, portanto, mais aguçada e, sem surpresa, a nossa análise da era actual mais crítica.
Acho esta experiência particularmente relevante quando vejo o que acontece no mundo. A minha frustração de hoje começa a ser comparável aos sentimentos que experimentamos nos últimos anos do comunismo. Os sonhos e ambições que tínhamos no momento da queda do comunismo não se tornaram – para meu grande pesar – na nossa realidade de hoje. A realidade actual não é o que considerávamos uma sociedade livre. Não apenas no meu país ou na minha parte do mundo.
O que está a acontecer connosco ou em nosso redor? Tenho dúvidas quanto à adequação da frase utilizada em diversos fóruns, bem como em tantos outros textos, de que “estamos perante um mundo novo”. Um mundo novo? Agora? Em que sentido é novo? Estamos a andar para a frente ou para trás? Eventualmente, quererão os autores dessa expressão lembrar-nos que, no Ocidente, estamos a sair da era relativamente livre, tranquila e próspera das últimas décadas? Terá sido essa era um período singular, uma excepção histórica?
Não falemos de um “mundo novo”. Vamos chamar-lhe pelo nome certo. Vamos chamar-lhe mundo pós-democrático, pós-político e pós-normal. Não parece haver algo de novo. No passado a humanidade viveu muitas vezes tais situações. No entanto, pode haver agora uma diferença. Estou alarmado com a inegável perda de normalidade, racionalidade e bom senso.
Alguns de nós – eu inclusive – frequentemente usamos a famosa expressão “admirável mundo novo” de Aldous Huxley. A minha ênfase sempre foi no adjectivo “admirável”, não no qualificativo “novo”. Todos os sinais indicam que entramos numa perigosa era da instabilidade política, económica e financeira ligada à supressão da liberdade e do mercado livre. Ouso dizer que estamos agora a aproximarmo-nos de uma variante desse admirável mundo novo.
Onde surgem os principais sintomas desta nova fase? Desde logo na esfera política. Há várias décadas assistimos à evaporação das disputas político-ideológicas. Com isso, os problemas fundamentais da sociedade deixaram de ser abordados politicamente. Coincide esta particularidade com o enfraquecimento dos partidos políticos, que se tornaram nada mais do que um adorno enganoso do nosso sistema. Funcionam apenas como uma aparência de democracia. Na realidade, os interesses da maioria passaram a ser subordinados aos interesses de minorias barulhentas e agressivas, representadas por grupos arrogantes de rentismo, e não por partidos políticos. A totalidade da sociedade não é agora, por isso, nem suficientemente representada nem satisfatoriamente levada em consideração.
As clássicas disputas políticas com base em ideias claras e bem definidas, formuladas e expressas com autenticidade pelos partidos, caíram em descrédito e estão a ser substituídas por talk-shows superficiais na TV e por uma “democracia de especialistas” em que os políticos perdem a preponderância do seu papel na sociedade. As figuras públicas e os autoproclamados especialistas, assumiram essa função.
A relevância sem precedentes dos especialistas ficou visível durante a epidemia de Covid. A política, significando a avaliação de alternativas e de custos e benefícios, como resultado do seu modo de pensar, desapareceu. Não tornou o sistema mais democrático, mais amigável, nem mais eficiente. Lembra-me os anos e décadas de esforços dos ideólogos comunistas para substituir a política pela “expertocracia”.
Aquilo com que lidamos agora não é uma importação do Leste. Foi auto-fabricado no Ocidente. Foi o próprio Ocidente que abriu as portas para a migração em massa ao aceitar a ideologia do multiculturalismo. Foi o próprio Ocidente que levou a uma profunda crise energética ao promover as loucuras do ambientalismo e do Green Deal, causando a si mesmo enormes prejuízos económicos. E foi o próprio Ocidente que minou sua competitividade ao suprimir os mercados por meio de uma extensa e prejudicial regulação burocrática baseada em objectivos políticos. Um pré-requisito para encontrar o caminho certo para a recuperação do Ocidente é livrar-se dos nossos próprios erros e pressuposições, não culpando o mundo em nosso redor.
Concentremo-nos nos nossos equívocos. Não falemos de “reconfiguração de alianças na Europa”, não tentemos encontrar “novos equilíbrios”. Falemos sobre um retorno à política com conteúdo ideológico. Sobre a necessidade de um renascimento dos partidos políticos. Procuremos novos líderes políticos corajosos. Regressemos à “política política”.
Concordo que é preciso – como se costuma dizer – “reinventar a política externa”. Temos de voltar a adoptar o seu significado e conteúdo originais. A política externa deve expressar e perseguir os interesses nacionais e promovê-los procurando compromissos úteis. Como estamos a ver agora na Ucrânia, onde não há compromisso, há uma guerra. Quando não falamos uns com os outros, disparamos uns contra os outros. Todas as partes do conflito actual deveriam há muito ter começado a negociar. Não apenas os russos e os ucranianos.
Todos sabemos que a guerra não caiu do céu. Há muito tempo que está em criação. Os problemas não começaram em Fevereiro de 2022. Já em 2014, alertei para a desestabilização da Ucrânia e o crescente confronto entre o Ocidente e a Rússia. Infelizmente, o então confronto transformou-se numa guerra de grande escala com milhares de vítimas, enorme destruição de vastas regiões da Ucrânia e mudanças fundamentais na cena internacional. Culpar o agressor é fácil, mas mais difícil é conseguir ver e compreender toda a sequência dos acontecimentos que levaram a isso.
Menciona-se frequentemente o papel fundamental dos estados do sudeste europeu na expectativa da NATO e da União Europeia. Após visitar recentemente o norte da Macedónia, posso confirmar que as pessoas estão confusas e se sentem maltratadas. Os Estados da Europa de Leste não veem com bons olhos a constante condescendência do Ocidente. Estes estados têm, sem dúvida, história, cultura, religião e experiências recentes diferentes da dos europeus ocidentais e centrais. Não estão apenas geograficamente mais perto de Istambul do que de Bruxelas, mas também mental e historicamente mais próximos. Devemos estar cientes disso.
Nota editorial:
Václav Klaus é Economista e Professor de Finanças. Foi presidente da República Checa de 2003 até 2013 e primeiro-ministro entre 1992 e 1997. Intelectual de reconhecida craveira internacional, é um dos mais importantes políticos europeus desde a queda do comunismo.
Texto para a coluna da Oficina da Liberdade adaptado da intervenção na sessão de abertura a 17 de novembro passado do Crans Montana Forum, em Genebra, Suíça.