No dia 27 de fevereiro de 1933, o Parlamento alemão ardeu. De imediato, o recém-eleito Chanceler comunicou que tinha sido fogo posto por um inimigo do Estado e que era iminente um golpe organizado pelos seus adversários políticos. O medo da eclosão de uma guerra civil disseminou-se entre a população, tornando-a recetiva a qualquer medida que prometesse preservar a paz social.
No dia seguinte, a conselho do Chanceler, o Presidente Hindenburg aprovou um decreto de lei severamente restritivo de liberdades civis basilares. Suprimiu-se a liberdade individual, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, o direito de associação e de reunião pública, a privacidade da correspondência e das comunicações. Em nome do bem comum, sacrificaram-se os direitos individuais. Todos aqueles apontados como inimigos do Estado – entenda-se, adversários políticos ou contestatários do governo em funções – foram de imediato detidos. Seriam eles os primeiros confinados nos novos campos de concentração. Graças à normalização de um estado de exceção tornado permanente, Hitler governou com legitimidade judicial durante os doze anos de vigência do regime nazi.
Avancemos quase um século. Passaram-se mais de dois anos desde o início da declaração de pandemia de Covid-19. Em Portugal, governou-se em estado de emergência durante 218 dias em treze meses. Seguiu-se-lhe um “regime da situação de calamidade” para justificar a restrição de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, tal como contemplados na Constituição da República Portuguesa (CRP).
No dia 1 de julho de 2021, Sua Excelência o Primeiro-Ministro, Dr. António Costa, determinou a constituição de uma comissão técnica para elaborar uma revisão do enquadramento jurídico. Ele próprio indicou os quatro membros integrantes dessa comissão, produtora de um documento chamado “Anteprojeto de Lei de Proteção em Emergência de Saúde Pública” (ALPESP), o qual pode ser encontrado aqui. Este texto tem dois grandes objetivos:
Primeiro, ilibar de quaisquer responsabilidades jurídicas os protagonistas políticos e demais autoridades estatais pelo sucessivo abuso de funções de soberania ocorridos durante a vigência da declaração de pandemia de Covid-19. Defende o ALPESP que há uma lacuna na CRP em relação à ocorrência de certas calamidades públicas, como epidemias e pandemias.
Segundo, propor um enquadramento legal que possibilita a transferência futura dos mais amplos poderes para o Primeiro-Ministro e o seu governo sem intervenção de outros órgãos de soberania. Bastaria que o governo declarasse a existência de uma emergência de saúde pública para se instituir um estado de exceção jurídico e político.
Em resposta a este Anteprojeto, foi redigida uma análise tendencialmente exaustiva e técnica – a qual pode ser encontrada aqui –, assinada por um conjunto de cidadãos portugueses – entre eles alguns notáveis, como o médico Fernando Nobre e o economista Henrique Neto, ambos ex-deputados.
A Análise avança considerações políticas e jurídicas, bem como fornece, nas notas de rodapé, documentação científica relevante para sustentar a afirmação de que houve excesso de zelo por parte do governo e concomitante abuso de funções de soberania ao longo desses dois anos. Entendem os signatários que:
Primeiro, contrariamente ao que assumem os redatores do ALPESP, “a CRP não negligencia ameaças à saúde pública. /…/ Os redatores e sucessivos revisores da CRP sabiam que contemplar a situação de calamidade pública, seja ela real ou putativa, como pretexto para uma governação em estado de exceção”, facilitaria a instituição de uma ditadura de facto e de juris, difícil de suspender, motivo pelo qual não o admitiram.
Segundo, a lei proposta permitiria que a governação de facto pertencesse a um Conselho Científico, constituído por especialistas não eleitos democraticamente. Estes tecnocratas seriam agentes escolhidos pelo próprio Primeiro-Ministro. Isso significa que “ficaria condicionada a independência /…/ e a transparência do processo deliberativo, dado que os especialistas podem ser escolhidos em função dos interesses políticos do Primeiro-Ministro”. Ao nível da influência externa, o ALPESP admite ainda que instituições de poder supranacionais, como a OMS, possam limitar a soberania do Estado Português.
Terceiro, esta lei permite “que qualquer cidadão, e mesmo massas populacionais inteiras, possa ser privado, por tempo indeterminado, da sua liberdade de circulação, de acesso ao espaço público, de reunião e de comércio”. Isto sem condenação judicial prévia. O próprio acesso a cuidados de saúde seria reservado aos cumpridores das normas, e o governo poderia ainda suspender o “direito à greve previsto no Código do Trabalho a todos os serviços que considere essenciais por decreto. /…/ A comissão técnica optou pela via ardilosa de propor a criação de uma lei que permita todos esses desrespeitos sem passar pela revisão constitucional que os impossibilitaria”.
Por estes motivos e outros, e “contrariamente ao que afirma, o ALPESP apresenta uma ‘carte blanche para o poder executivo adotar quaisquer outras medidas que na lei não estejam expressamente previstas ou, pelo menos, nela não tenham fundamento’ (ALPESP, p. 7). É uma contradição de princípio afirmar a ‘legitimidade democrática’ (ibid.) de uma lei que consubstancie ‘uma intensa restrição aos direitos e às liberdades, assim evitando-se ativar o estado de exceção constitucional’ (ibid.). Ora, a figura do estado de exceção constitucional serve precisamente para que a governação não possa reclamar poderes que extrapolem o âmbito do funcionamento do estado de direito normal. O objeto jurídico ‘estado de emergência’ serve desde logo para dar resposta a situações excecionais, sendo injustificada a normalização da exceção”.
O ALPESP foi mencionado na comunicação social e comentado pelas instituições responsáveis. Porém, o documento é praticamente desconhecido da maioria dos portugueses. Falta ainda discutir e interpretar o que significa para uma sociedade como a nossa ter um governo dito democrático que encomenda textos jurídicos ad hoc para se libertar de responsabilidades políticas pelo seu abuso de funções de soberania e para aumentar o poder do órgão executivo de modo improcedente. E isto sem suscitar a indignação popular e a crítica severa entre os meios do poder.
Os signatários da Análise ao ALPESP esperam que esta possa incitar a discussão sobre o espírito dos tempos e a crítica à crescente deriva totalitária na governamentação, a qual tende à normalização do estado de exceção como regime político permanente em função de argumentos de saúde pública. Foi desse modo, invocando o bem comum, a paz social, a valorização da segurança coletiva em detrimento da liberdade individual, que vingaram os regimes ditatoriais do século XX. Hoje, ajustado à atualidade, o processo repete-se. É a própria sobrevivência da democracia e da sociedade aberta que está em causa. Não é assunto de somenos.
Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.