Desde criança que me foi passada a ideia de que temos dois ouvidos e uma boca por uma razão. De forma simplista, esta expressão quer dizer que, por termos mais ouvidos, devemos ouvir mais e falar menos.
Esta condição humana foi-nos simplesmente imposta (salvo algumas exceções). Foi fruto de uma seleção natural.
Desde o início da Humanidade até agora, esta condição nunca se alterou, tendo-se apenas alterado a forma e os meios que utilizamos para nos entendermos (ou não) uns aos outros.
Yuval Noah Harari, reconhecido historiador, investigador e professor de História do Mundo na Universidade Hebraica de Jerusalém argumenta, no seu bestseller “Sapiens” que foram as capacidades de imaginação e de interpretação, os fatores diferenciadores que permitiram à espécie Homo Sapiens (a nossa) formar sociedades.
Essas eram baseadas em conceitos meramente imaginários que proliferaram através de um sistema de comunicação padronizado e reconhecido.
Conceitos como países, religião e até dinheiro nada mais são que frutos da criatividade que se tornaram regras, graças à cooperação e capacidade de comunicação.
Por definição, para que dois indivíduos consigam trocar ideias entre si é necessário que exista uma mensagem, um emissor e um recetor. Ora, se antigamente poderia existir o desafio da língua e do meio em que a mensagem proliferava, hoje o mundo tende, cada vez mais, a aproximar-se. E isso traz desafios.
Atrevo-me a dizer que, atualmente, comunicamos mais do que nunca. Estamos constantemente ligados uns aos outros e a distância que outrora inibia a troca de ideias, hoje, de certa forma, impulsiona-a.
Numa sociedade em que o poder da tecnologia como catalisador de comunicação aumenta, não devemos esquecer o que a fundamenta: a capacidade de interpretação humana. E essa, sempre esteve e estará presente.
Está intrínseca numa conversa uma forte componente subjetiva que se vai dissipando, quanto maior for a nossa capacidade de interpretar. Mas interpretar, hoje, é mais difícil que nunca.
É uma tarefa hercúlea perceber o tom escrito de uma mensagem ou email. Será que está a ser cordial? Ou sarcástico?
Hoje, com a cada vez mais frequente substituição do contacto humano pelo digital, perceber realmente as intenções de quem troca ideias connosco tornou-se numa tarefa fundamental e corrente no nosso dia a dia e, no entanto, tão difícil.
É por isso importante, e ao mesmo tempo desafiante, olharmos para o futuro e percebermos de que forma queremos que seja. Pela primeira vez em 4 mil milhões de anos, uma espécie tem o poder de moldar a sua realidade, relegando para segundo plano a teoria da seleção natural.
Um grande aliado desse poder é a inteligência artificial que, se numa primeira instância necessita do input humano, depois deverá ganhar autonomia para interpretar, para evoluir.
E é aqui que a nossa responsabilidade ganha peso.
Claro que nunca poderemos dar a um computador dois ouvidos e uma boca. O que podemos é esforçar-nos e retirar das nossas (muitas) interações diárias a postura defensiva e idealizações pré-concebidas que inibem a interpretação.
Talvez assim possamos dar às conversas presentes e, acima de tudo, às futuras, o espaço e tempo para que convirjam em melhores decisões. Afinal, é assim que evoluímos como sociedades, como organizações, como indivíduos.
Se pensarmos que ao fim de 70 mil anos de existência (da nossa espécie) tudo à nossa volta mudou, talvez possamos dar mais valor ao que se mantém, preparando-nos para o que aí vem.
É de facto necessário ouvir mais. E com atenção.
Ricardo Figueiredo é CEO da LUGGit, uma empresa tecnológica fundada em 2019, que providencia um serviço de recolha, armazenamento e entrega de bagagem. Em 2020 foi considerada pela Organização Mundial de Turismo como a 2ª Solução Mais Inovadora do Mundo. Juntou-se ao Hub de Lisboa dos Global Shapers em 2021.
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.