Na passada sexta-feira, a deputada Joacine Katar Moreira recomendou ao Governo a retirada de sete pinturas do Salão Nobre da Assembleia da República, sugerindo a recolocação das obras em espaço museológico mais conveniente e onde seja possível efectuar a devida “contextualização histórica crítica”. Não se percebe porque é que tendo por objectivo a referida contextualização iconográfica e iconológica das obras, a deputada sugere a retirada das mesmas do local para o qual foram pensadas e criadas. As referidas obras, atribuídas aos pintores Sousa Lopes e Domingues Rebelo, e pintadas entre 1944 e 1945, inserem-se no espírito das comemorações da Exposição do Mundo Português de 1940. A qualidade das referidas pinturas não está em questão. Para a referida deputada, as mesmas transmitem ideais de subalternidade e subjugação dos povos. Relembremos que a referida Exposição do Mundo Português de 1940 incluía precisamente a chamada secção colonial, onde à semelhança da exposição colonial do Porto de 1934, o regime pretendia repetir o grandioso acto de propaganda colonial na metrópole. Os aspectos degradantes destas exposições estão amplamente debatidos e a imanência da memória dos mesmos será vital para impedir que se repitam. Regressemos pois às pinturas. É legitimo que Joacine considere as referidas pinturas lesivas para a memória e a identidade dos povos nelas representados. Não será, porém, legitima a sua recomendação para que sejam retiradas do espaço para o qual foram pensadas e criadas. Uma obra de arte, pictórica, escultórica ou arquitectónica, não se legitima apenas pela superfície da matéria com que é criada. O contexto onde se insere, constitui parte integrante da sua memória, do seu sentido, da sua legibilidade. A contextualização histórica das obras no espaço para o qual foram criadas, reveste-se de uma lógica própria, irrepetível num espaço museológico distinto. Em A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, Walter Benjamin refere precisamente a importância do «lugar» na leitura e na «aura» intrínseca das obras de arte: “Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – a sua existência única no lugar em que se encontra. É, todavia, nessa existência única, e apenas aí, que se cumpre a história à qual, no decurso da sua existência, ela esteve submetida. Nisso, contam tanto as modificações que sofreu ao longo do tempo na sua estrutura física, como as diferentes relações de propriedade de que tenha sido objecto”. Benjamin é claro. A “contextualização histórica crítica” que Joacine pretende só será eficaz no lugar original para o qual as obras foram idealizadas, pois esse espaço constitui uma parte integrante do significado das mesmas. Recordo uma vez mais que considero legitima a leitura que Joacine estabelece. Mas a deputada deverá compreender que uma obra de arte constitui um complexo universo de sentidos que não se esgota na sua leitura crítica individual. Recordemos a este respeito Umberto Eco. Em a Definição da Arte, Eco estabelece precisamente essa multitude de sentidos que a obra de arte possui:

“Ao dar vida a uma forma, o artista torna-a acessível às infinitas interpretações possíveis. Possíveis, frisamos bem, porque a «obra vive apenas nas interpretações que dela se fazem»; e infinitas não só pela característica de fecundidade própria da forma, mas porque perante ela se coloca a infinidade das personalidades interpretantes, cada uma delas com o seu modo de ver, de pensar, de ser”. Note-se que o que Joacine pretende, é assumir-se como personalidade pensante tutelar. A sua visão extingue as demais. Joacine não contempla sequer a existência de outras formas de ver e sentir os objectos em questão que, recorde-se, não motivam nem pela qualidade, nem pela polémica, a actual discussão. Os mesmos integram-se no vasto e complexo mecanismo de significação da arte, um sistema que Omar Calabrese caracteriza enquanto fenómeno participante no sistema mais vasto da história da cultura. Calabrese integra precisamente a pluralidade de visões, como um dos mecanismos mais valiosos da criação artística, recordando-nos que a cultura constitui um depósito de informação socializada e um reservatório plurilingue, e que é precisamente esse plurilinguismo que permite a confrontação com outras culturas. Joacine, à semelhança dos demais adeptos da Cancel ou Call-out Culture ou do movimento Woke, tomam a nuvem por Juno. Os objectos artísticos constituem o espectro visível do momento cultural em que são feitos. Por este motivo, inscrevem no futuro traços culturais indeléveis mas frágeis – o espaço perene da memória colectiva.

Deixo implícito no titulo uma questão directa à deputada Joacine: quando e onde terminará essa contextualização histórica? É que de facto, o movimento, depois de iniciado, será imparável. O que fazer da magnífica Adoração dos Reis Magos pintada por Vasco Fernandes entre 1501 e 1506, e onde se encontra representado pela primeira vez um Índio Tupinambá em atitude subserviente e devidamente europeizado de acordo com a moral da época? E o que dizer da maravilhosa Anunciação de 1515 de Jorge Afonso, onde a virgem se encontra representada sobre um tapete congolês, fruto da mais que certa exploração comercial que os Portugueses efectuavam na costa africana? E como não interpretar o espírito aguerrido que se pressente nos célebres Painéis de São Vicente, como um ex-voto gratulatório das Conquistas do Norte de África? Certamente que as figuras representadas ilustram e imanam essa terrível violência expansiva do cristianismo da época… não somos ingénuos – sabemos que ela aconteceu e que continuará a acontecer…

Os referidos movimentos onde a deputada Joacine se insere, pugnam por um modelo de sociedade que Byung-Chul Han designa por Paliativa. Uma sociedade onde a dor física, histórica, política e psicológica será erradicada de vez. Han caracteriza essa sociedade enquanto reino da algofobia, ou seja, o medo generalizado da dor. O filósofo alerta-nos precisamente para a ameaça que o alastrar dessa democracia paliativa constitui, ou seja, uma acção política que não tem “coragem para a dor”. É nesse sentido que a proposta da deputada Joacine deverá ser entendida. Joacine prefere ocultar a história e os traços objectificados da mesma através das sete pinturas do Salão Nobre, ao invés de enfrentar os reais problemas de integração que persistem teimosamente desde o século XVI em Portugal. A deputada quer um exemplo prático de uma obra de arte que ilustre com clareza a persistência desta problemática? Sugiro que visite o Museu do Azulejo e que contemple a magnífica Grande Vista de Lisboa, pintada pelo pintor espanhol Gabriel del Barco antes do fatídico terremoto de 1755. Aí poderá observar que a norte do actual Palácio de São Bento, localizava-se precisamente o famigerado bairro do Mocambo. Vê-se claramente que à época a sua localização se situava na periferia da cidade de Lisboa, ou seja, junto à zona industrial e perto das fábricas de cerâmica. Através do magnífico estudo de Isabel Castro Henriques, percebe-se que a população que o habitava, constituída maioritariamente por africanos, forros e escravos, seria responsável pelas principais tarefas de manutenção e serviços do espaço urbano lisboeta: varredores, caiadores, calhandreiras, vendedoras de carvão, transporte de pessoas e mercadorias, circulação de mensagens e informações, trabalho do ferro, tecelagem, construção naval, pesca, etc. Será que a deputada Joacine não intui aqui um preocupante padrão com a actualidade? Será que não percebe que está plena de razão, quando afirma que existe um óbvio problema de integração em Portugal? Será que não percebe que desde o século XVI, estas populações nunca saíram da periferia física e social e que continua, de facto, a desempenhar as mesmíssimas funções laborais?

A sua luta poderá ser justa e plena de sentido, basta que para tal, denuncie os verdadeiros problemas que persistem e que não se deixe seduzir pelo aparente facilitismo que os movimentos sociais contemporâneos parecem oferecer. É possível que conquiste alguns likes na suas redes sociais, mas a oportunidade de fazer algo pela mudança de mentalidades que urge, ficará por realizar. É que o tempo passa depressa, e a fama ilusória dos likes também. Pessoa alerta-nos precisamente para a impermanência dos movimentos sociais, dos impérios, das religiões… A sua definição de arte é por demais eloquente: “Só a arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes – tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte se vê, porque dura”. Um dia, num futuro muito distante, também os movimentos sociais e a deputada Joacine desaparecerão e as pinturas deste tempo irão permanecer enquanto marca permanente da vacuidade intelectual que impera.

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