Todos os olhos estavam no Dnipro; agora todos os olhos parecem estar no Levante. Mas mesmo aqui ao lado desenrola-se um acontecimento que poderá ter consequências muito maiores para Portugal – e para a União Europeia – do que os conflitos distantes mencionados.
O anti-espanholismo foi uma pedra basilar do discurso e imaginário nacionais desde 1640. Hoje, como outrora, os movimentos de desintegração no país vizinho visitam as conversas de alguns portugueses; é de bom-tom criticar Madrid e apoiar, mesmo que timidamente, os povos basco e catalão, supostamente vítimas do jugo castelhano. Muitos são aqueles que, anacronicamente, sustentam que a independência nacional foi fruto de uma escolha – Madrid decidiu privilegiar recuperar a Catalunha em detrimento de Portugal. Esquecem-se, estes defensores das liberdades dos povos, que comparar Portugal e a Catalunha no século XVII seria a mesma coisa que comparar a Rússia e a Roménia no século XXI. Portugal ia do Rio de Janeiro a Macau e era imensamente mais poderoso do que qualquer entidade catalã que na realidade estava subordinada à Coroa de Aragão.
O independentismo basco tem vindo a vacilar nos últimos anos, ao passo que o catalão tem vindo a crescer. O auge do último decorreu em 2017 quando Carles Puigdemont declarou a independência da Catalunha, território que cessaria de fazer parte da nação espanhola. Mas o fiasco não tardou, a nova República da Catalunha não foi reconhecida por nenhum Estado soberano. O governo de Mariano Rajoy activou o artigo 155 da Constituição Espanhola. O executivo catalão foi destituído e foram marcadas eleições catalãs.
Em 2023, Pedro Sánchez conseguiu, aparentemente, um acordo com vários partidos para voltar a ser primeiro-ministro espanhol (o termo oficial em Espanha é presidente do governo). O problema reside no facto que este acordo foi alcançado através de um entendimento com secessionistas catalães. Santos Cerdán, mandatado por Sánchez, foi até Bruxelas onde Puigdemont se refugiou. E o fumo branco foi vislumbrado.
Um acordo foi assinado por Santos Cerdán, representante do Partido Socialista e Obreiro Espanhol, e Jordi Turull i Negre, secretário-geral do partido de Puigdemont, Junts per Catalunya. Datado do dia nove de Novembro de 2023. Mais importante do que a data, é o sítio, que também consta no documento. Claro está, Bruxelas.
Porque a independência desejada pela Catalunha é, no mínimo, diferente daquilo que se entendia por independência outrora, e que ainda se entende em quase todo o mundo fora da Europa. A Catalunha não aspira a ser uma Suíça, uma Noruega ou um Reino Unido, a Catalunha, ou melhor dizendo, os secessionistas catalães, querem ir a Bruxelas sem terem de passar por Madrid.
É a existência do ordenamento jurídico da União Europeia que permite à Catalunha sonhar, que galvaniza os seus independentistas. É possível que o melhor livro, escrito por um português, para perceber este estado de espírito seja Independência na União Europeia de Francisco Pereira Coutinho; convidamos aqueles que querem saber mais a consultá-lo.
Seria confortável, como muitos à direita fazem, deitar as culpas em cima de Sánchez e dos socialistas; mas a questão é muito mais complexa e merece mais do que um bate-boca medíocre. O ordenamento da União Europeia mina, inexoravelmente, a unidade territorial dos Estados que a compõem. Principalmente porque toda a construção europeia é baseada num conceito chamado soberania partilhada (ou dividida). Esse conceito é uma contradictio in adjecto – a soberania é indivisível desde Jean Bodin, logo o adjectivo partilhada não pode estar junto com o substantivo soberania. A construção estatal do século XVI até ao presente é baseada na indivisibilidade da soberania.
A União Europeia é então, a nosso ver, um Estado federal em construção. Isso significa que se a União Europeia continuar a progredir como o tem feito até agora os Estados que dela são membros passarão – se é que não passaram já – de Estados soberanos a Estados federados de um novo Estado. No entanto, outros afirmam que a União é uma Federação e não um Estado federal. Eles acrescentam ao conceito dúbio de soberania partilhada o de constitucionalismo multi-nível. Sim, porque apesar dos franceses e dos holandeses terem rejeitado uma constituição europeia por referendo em 2005, o Tratado de Lisboa – nas palavras de Valéry Giscard d’Estaing – foi a mesma coisa com outro nome.
O constitucionalismo multi-nível seria uma partilha de competências – falar de competências é bastante ardiloso porque permite ignorar a questão da soberania, contornando-a. Aparentemente existem competências dos Estados que fazem parte da União, competências da União, e competências partilhadas. Esta salganhada é contrária a um dos elementos fundamentais do direito, a saber: o elemento da segurança jurídica. Quando existe um conflito entre a jurisdição nacional e a jurisdição europeia quem é que leva a melhor? Para a jurisprudência europeia – consagrada no caso Costa v. ENEL de 1964 – é o ordenamento europeu que se impõe face ao ordenamento nacional. Os constitucionalistas de vários países europeus, alemães in primis, opõem-se a esta visão.
O tempo, em todo o caso, está do lado dos juristas que defendem a superioridade do Tribunal de Justiça da União Europeia face ao Tribunal de Karlsruhe. Porque à medida que o tempo passa a União Europeia vem adquirindo mais competências e os Estados têm vindo a perdê-las. Foi esta constatação que provocou o Brexit.
Voltemos a Espanha. O acordo entre o PSOE e o Junts permite aos dois partidos manter a sua posição, e reconhece divergências grandes entre os mesmos. Os catalães consideram legítimos os eventos que levaram à declaração de independência, desde 2014 até 2017. Os socialistas rejeitam a legalidade do referendo e da declaração. Posteriormente, com o objectivo de normalizar a situação política, os socialistas comprometem-se em passar uma lei de amnistia que limpará as máculas dos secessionistas catalães. Isto é uma flagrante negação do princípio de separação de poderes, e é bem provável que se isto avançar o Tribunal Constitucional de Espanha se pronuncie, proclamando a inconstitucionalidade da lei.
Apesar de a maior parte dos comentários se centrarem na amnistia o mais interessante do acordo está noutro lado. PSOE e Junts acordam dotar-se dum mecanismo internacional que deve acompanhar e verificar o processo negocial e os acordos aos quais se chegue. Ora, PSOE e Junts não são sujeitos de Direito Internacional, a sua existência como partidos políticos só ganha significado dentro do ordenamento espanhol. Este mecanismo internacional terá, provavelmente, uma identidade europeia. Aliás, noutro ponto do acordo as duas partes defendem o seguinte: “A ampliação da participação directa da Catalunha nas instituições europeias e outros organismos e entidades internacionais, particularmente nos assuntos que têm especial incidência no seu território.”
As instituições oficiais da União Europeia juram a pés juntos que a questão catalã é uma questão interna espanhola. Porém, oficiosamente, pela calada, fomentam e apoiam vários políticos catalães, o caso de Puigdemont é sintomático mas não é o único.
A União Europeia sempre teve o desejo de criar a Europa das regiões, o que em alguns pontos tem sentido prático. Uma integração entre o Minho e a Galiza e uma integração entre o Algarve e a Andaluzia fazem mais sentido do que uma integração entre o Minho e o Algarve ou entre a Galiza e a Andaluzia. Os Estados Nação históricos são causadores de guerras e violência para os federalistas europeus, a sua marginalização e mesmo desaparecimento não são problemáticos. Para os burocratas em Bruxelas é indiferente se a Catalunha faz parte de Espanha ou não, o importante é que ela faça parte da União Europeia.
Em Madrid não há a mesma coragem que existe em Londres, e as elites espanholas continuarão a fazer acrobacia entre o Estado espanhol e a União Europeia. A problemática catalã é reveladora, demonstra os limites do sofismo das competências, a questão catalã é a questão da soberania, que é tão actual no século XXI como o foi nos séculos passados.
Bismarck terá dito que a nação mais forte do mundo era a Espanha; segundo ele os espanhóis estavam sempre a tentar destruí-la mas não conseguiam. Este século, quiçá mais do que nunca, voltará a pôr à prova o adágio do prussiano.