La Fortuna, 12 de fevereiro

Há a barulheira das cigarras e de todos os insetos, o trovão dos macacos uivadores e, de vez em quando, uns outros sons na distância que têm dono, mas eu não conheço. E, nas notas do telefone, deitado numa rede debaixo da floresta tropical da Costa Rica, começo a escrever, antes de dormir.

À minha volta, cobras amarelas confundem-se com as trepadeiras. Outras rastejam, com medo das minhas botas. E eu, com medo da morte nos seus dentes. Um guaxinim segue-nos, curioso, enquanto uma borboleta do tamanho da palma da minha mão reflete o azul na luz do nosso foco, antes de pousar pela última vez na teia de uma aranha. As folhas são um telhado que, de vez em quando, deixa escapar uma estrela perdida. Rãs vermelhas e verdes fazem delas as suas águas furtadas. E eu não estava em paz. Era tudo tão de verdade que parecia mentira porque faltava uma coisa na minha cabeça: lixo.

Já volto, quando tiver um computador a sério e regressar à civilização.

Jacó, 14 de fevereiro

Dois dias depois e ainda estou confuso. Pensar que a minha intuição já acha “suposto” que a presença do Homem se manifeste na forma de plástico mesmo nos lugares mais idílicos. E pus-me a fazer contas. De onde teria tirado esta ideia? Descobri: no Rio de Janeiro, quando fui ver jacarés na lagoa, não consegui nenhuma fotografia do bicho sem garrafas, pneus, e tudo o mais no plano. Na Indonésia, a surfar em Bali, remei tampões, preservativos e cotonetes. Na Amazónia, a 12 horas da mais próxima população humana moderna significativa, não havia muito lixo mas, mesmo assim, lá ia flutuando uma embalagem que havia feito milhares de quilómetros para fazer descer calafrios pela nossa espinha abaixo. Em casa, enquanto entrevistava um pescador da minha idade, bebíamos café em copos de cartão, no barco. Quando ele acabou, sem pensar, atirou o copo ao mar. Porque é que aqui os vestígios humanos são diferentes?

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Guápiles, 15 de fevereiro

De novo na selva e lembrei-me de outra coisa curiosa.

No meu primeiro ano da licenciatura, deparei-me com este conceito engraçado: “Soft Power”. Essa noção das relações internacionais que atesta ao poder que um Estado pode exercer sobre outro, não através de represálias económicas nem bombas de napalm, mas através de filmes e música que toquem o coração. Nunca comprei a ideia. Claro que sim, os Estados Unidos dão-nos Hollywood e nós gostamos e se calhar até compramos os mesmos óculos que o protagonista. Mas diria que acordos económicos movem mais corações políticos que aquele beijo no fim do filme. Saindo da arena internacional para a sociedade, também sempre fui muito cético quando se fala de “mudança de mentalidades”, campanhas de incentivo que não tocam nas nossas carteiras, e awareness sem coerção. Vejo-a como uma espécie de soft power dirigido às nossas cabeças que, no fim do dia, serve só para aquela minúscula franja de gente para quem é possível preocupar-se mais com comer açaí biológico e comprar uma garrafa térmica de cortiça do que com a luta para pagar a renda em Lisboa. Mais ainda, se o esforço for tão pouco que a malta lá decida comportar-se desta ou daquela maneira, como vamos medir isso? Assusta não saber para que serve o dinheiro que estamos a gastar em blá blá blá sem consequência. Deixei a ideia aqui e fomos para a montanha.

Chindama, 17 de fevereiro

Um dia depois e volto de uma catarata com 150 metros no final de um caminho pela selva, nas alturas, que durou quatro horas, só na ida. Mais uma vez, só verde e mais nada. Foi, talvez, a segunda catarata mais impressionante que vi na minha vida. A mais bonita que vi, muito parecida, foi na Indonésia. Mas, ao contrário do que aconteceu nesta, na Indonésia decidi não mergulhar. A água cheirava a esgoto. E voltei a pensar. Só que desta vez, fui fazer o meu trabalho de casa. Verifiquei que, apesar de um Índice de Desenvolvimento Humano, por exemplo, mais alto do que em muitos países da América Latina, a Costa Rica está, mesmo assim, abaixo de Portugal no ranking. O mesmo acontece ao nível do PIB per capita, num país encarecido pelo turismo. O ponto disto? Aqui é preciso preocupar-se em como pagar a renda. Não é um país de pessoas super-ricas com preocupações apenas pós-materialistas. Começava a ficar assustado. Será que poderia ser… cultura? Fomos subir um vulcão.

Irazú, 19 de fevereiro

E olhei para as casas, algumas novas, amarelinhas e bonitas, sim. Outras com telhados de chapa e homens de saída para as plantações de café que escorrem pelas cinzas vulcânicas. E eles a cavalo, com um cigarro na boca. Sim, ainda estou na América Latina. Mas não via beatas no chão.

Mas calma, 20 % da Costa Rica são áreas protegidas, com alguns guarda-parques que fazem rondas e volta e meia escrevem avisos àqueles que desobedecem. Todos com quem falámos aqui estão prontos para nos levar a uma catarata, montanha ou gruta por uma quantia qualquer e a economia são bananas, café e turismo caro. Seria isso, com certeza. Leis. Incentivos económicos. Multas e dinheiro.

Faz frio no alto dos vulcões. Do topo do Irazú, a três mil e tantos metros de altitude estávamos com cinco graus na madrugada e a minha cabeça foi para Portugal, para as minhas noites no Gerês. O nosso parque natural maravilhoso, protegido por leis e cheio de tesouros que valem muitos euros quando visitados e que, no entanto, se transforma num ecoponto gigante no fim do verão…

Na descida, parámos num restaurante de montanha. Café fumegante sob um teto de madeira e o clássico pinto (arroz com feijão) na luz da manhã. E perguntei ao Cusuko, o nosso amigo daqui, se ele achava que, afinal, isto poderia ter a ver com a cabeça das pessoas, mais do que tudo. E ele contou-me uma história. “O meu pai era caçador até à proibição da caça na Costa Rica. Passava os dias metido na mata, mas de outra forma. Entretanto, eu ofereci-lhe uma câmara. Continua a passar os dias na mata, mas traz fotografias de animais vivos e não corpos de animais mortos.” Achei lindo. “Mudança de mentalidades.” E engoli os meus pensamentos.

E fez sentido com todas as conversas que me foram mostrando que aqui, mais do que guarda-parques, multas e áreas protegidas, há pessoas que protegem. Pessoas orgulhosas das suas árvores enormes. Fervorosamente apaixonadas pelos seus jaguares que nunca viram, porque estão escondidos na floresta. E não acaba no lixo porque, no que toca a proteger, poluição, emergência climática e preservação da biodiversidade acabam por ser preocupações partilhadas. Farinha do mesmo saco. São números: um país que consome 98% da sua energia proveniente de fontes renováveis. Que, com menos de 0,1% da área terrestre do mundo, estima-se que contenha 5% da biodiversidade da terra. E que, para 2050, quer atingir a neutralidade carbónica com um plano em marcha.

Não será certamente só a cultura. Estas histórias têm sempre muitos caminhos. Mas eu caminhei sobre este com os meus pés descalços e surpreendi-me com o que encontrei. O nosso país também tem um plano para atingir a neutralidade carbónica em 2050. Mas não vejo nas pessoas o mesmo impulso para cuidar da natureza que vejo aqui. O que será preciso para que, em Portugal, pessoas como tu e eu sintam um orgulho tão grande do nosso património natural que nos seja impossível ficar indiferentes quando falta vontade de o proteger?

João Kopke é um contador de histórias que utiliza o surf, a sua formação artística em música clássica e a sua formação académica em Ciências Políticas e Relações Internacionais para criar conteúdos. Tem 24 anos e juntou-se ao Global Shapers Lisbon Hub em 2020.

O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa.  O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.