Do Cristianismo diz-se que é contracorrente. Mas isso tem menos a ver com roupas anacrónicas, do que com a possibilidade de resistir à superficialidade. Este é o primeiro ponto.

Recentemente, foi noticiado que Elon Musk irá receber um “prémio” de 56 mil milhões de dólares. Muito embora aqui o conceito de prémio seja muito discutível, dado que se trata de algo que, na verdade, Musk, dono da Tesla e do X – ex Twitter – dá a si mesmo. A reação deste foi curiosa: dirigindo-se aos seus fãs, escreveu no X, “Caramba, eu amo-vos”. Estranho amor este.

Antes de mais façamos esta pergunta: o que significam 56 mil milhões? Se formos às estatísticas do FMI sobre o PIB dos vários países, de 192, 86 têm PIB’s inferiores a esse valor, e, entre eles, podemos incluir a Geórgia, Moçambique, Estónia, Islândia ou Albânia. Noutro domínio, se Elon Musk quisesse aplicar este valor, isso implicaria que poderia comprar, de uma só vez, as 10 propriedades mais caras do mundo (5.6 mil milhões), os 100 quadros mais valiosos do mundo (4.7 mil milhões) e os 50 futebolistas mais cotados na atualidade (3.7 mil milhões), sem que isso sequer o faça temer pelo declínio da sua fortuna.

Ora, o que estes dados mostram é aquilo que realmente representa esta nova vaga de personagens mediáticas, vindas do mundo dos negócios e da tecnologia: o poder totalmente discricionário do dinheiro, capaz de manipular por diversão, e sem qualquer barreira ou limitação diante do sistema democrático; do talento que seduz não para ser colocado ao serviço, mas para servir os próprios interesses; da magia destinada a hipnotizar quem por ela se cruza. Se alguém tinha dificuldade a entender aquilo que o Papa Francisco denunciou no axioma “esta economia mata”, tem aqui um bom exemplo.

A perplexidade aumenta se nos recordarmos que, quase um mês antes da atribuição deste prémio, a empresa de Elon Musk despediu 15 mil trabalhadores, valor correspondente a 10% da sua força de trabalho, por um motivo curioso neste contexto: as ações da empresa perderam quase 30% do valor. O objetivo: “reduções de custos e aumento da produtividade” para a “próxima fase de crescimento”. Totalmente avassalador.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Se há algo que este tipo de protagonistas simbolizam é a economia onde o dinheiro equivale automaticamente a sabedoria, o prestígio é sinónimo de um posicionamento acima da ética e da lei, e onde tudo exige idolatria e seguidismo radical. Não importa se a mensagem que é passada é discriminatória. O que importa é o vencimento, o lucro, o proveito. Não importa se estes novos “gurus”, muitas vezes promotores de uma cultura da ignorância absoluta, são os mesmos que emergem a defender a cultura da “hipermasculinidade”. O que importa é a implantação do narcisismo, que vive de estupidificar os outros, através de pseudociência, para assim os controlar melhor.

Isto nada tem haver nem com a legitimidade do lucro, nem com os benefícios da invocação, ou com quem decide ser, por uma vez na vida, mais autoindulgente consigo mesmo e decide ir comprar algo que gosta, mesmo sendo 10 euros acima do orçamento que tinha estipulado. Isto é outra coisa. E a condescendência, impunidade e subserviência permanente e sistemática a estas novas formas de feudalismo é tremendamente atemorizadora.

Baseada na ideia de pragmatismo e eficácia, o que este novo narcisismo propõe é o completo desprezo pelos outros, a eliminação de qualquer conceito de bem comum e a culpabilização da miséria. Diante dele, prefiro ser um romântico que acredita no destino universal dos bens e na partilha dos talentos. Afinal de contas, a julgar pelo Auto da Barca do Inferno, é mesmo o parvo que acaba por ir para o Paraíso.