“Tu provarás assim sabor a sal
Do alheio pão e como é duro mal
Se desça escada alheia ou já se escale.”
Dante, Paraíso, XVII, 58-60
Um êxodo implica uma “saída” de um lugar que não nos pertence, que não sentimos nosso, rumo a um que se nos assemelhe ou nos seja prometido; o “exílio”, pelo contrário, seja ele escolhido ou imposto, é sempre sofrido. Mas “êxodo” – no seu significado original grego e nas suas ressonâncias bíblicas – é igualmente uma palavra que exprime destino e passagem, chegada e caminho, refúgio desejado e fuga dolorosa. É palavra de tom severo, na verdade: recorda-nos, tal como Agostinho, que perenemente, enquanto indivíduos e comunidade, somos todos peregrinos; ensina-nos a duvidar de toda a aparente estabilidade; que a “autoctonia”, isto é, a pretensão de sermos os autênticos, os puros, os únicos nativos das nossas mil “pequenas pátrias”, não existe senão nos mitos pueris de propaganda bafienta e de todos quantos deles são hoje ignaros epígonos; recorda-nos o significado profundo de outro “êxodo”, o derradeiro, o que a todos nos espera, e que nos devia tornar mais disponíveis para acolher o outro e mais atentos a qualquer egocentrismo obtuso. Se “descidos do céu à terra”, adverte Séneca (Ad Helviam 7,1 ss.), “veremos que povos inteiros mudaram de lugar”, que “nada jamais permaneceu onde nasceu” e que “são ininterruptas as idas e vindas do homem”. Poucas imagens são capazes de um fascínio comparável ao do errante entregue a um destino de veredas que só ele vê. E, no entanto, à pergunta “qual o teu herói clássico favorito”, nunca ouvi que alguém tivesse respondido Eneias. E devo dizer que até conheço uma mão cheia de romanos.
Na eventualidade de termos uma ideia ainda que difusa de Eneias – dado não completamente evidente, porque o mais frequente é não se nos ocorrer nada, a indiferença costuma ser total – é a do dissoluto. A de um assalariado dos Fados com a coluna ligeiramente mole. A de alguém que, quase por acaso, depois de empurrado para aqui e para ali pelos deuses, dá por si a fundar um império sem sabê-lo. E que, quando lhe acontece algo de verdadeiramente épico, como ser seduzido por uma irresistível rainha de Cartago disposta a dar-lhe o seu reino, foge com medo. Afinal, que herói percorre o Mediterrâneo de mãozinhas postas, apoiado em mais nada que não a pietas?
Há muito que me interrogo sobre as razões destes preconceitos que pesam sobre o carácter de Eneias e que fariam da Eneida uma história para fracos de espírito. Só recentemente percebi que este desconforto, misturado com aborrecimento, que se sente ao ler o poema de Virgílio – ou simplesmente ao ouvir falar dele – não tem tanto a ver com a figura pouco apelativa de Eneias, mas com o momento em que o lemos.
A Eneida não é um poema para tempos de paz. Os seus versos não são adequados para quando as coisas correm de feição. Quando tudo corre bem, a Eneida não pode deixar de aborrecer até à morte – e muita sorte tiveram aqueles que, ao longo dos séculos, experimentaram o luxo de bocejar sob os seus hexâmetros. O canto de Eneias guarda-se para momentos intensos, tudo ou nada, momentos em que desesperamos pela urgência de um sentido num depois que atordoa por ser diferente daquele antes em que nos resignámos a viver. Para utilizar uma metáfora meteorológica, a Eneida é uma leitura altamente recomendada para borrascas sem abrigo nem guarda-chuva.
Sempre assim foi, aliás, desde o início. Melhor, até antes ainda do início. Virgílio escrevia sobre os trabalhos de Eneias e, no entretanto, tentava aguentar-se o mais firme possível enquanto o Império, com soberba, se erguia por entre os escombros da República. Aconteceu na Idade Média, quando não se sabia para onde ir, a quem pertencer ou que língua falar após o colapso do Império Romano do Ocidente; na Florença de Dante, dividida entre guelfos e gibelinos, entre brancos e negros –aguardando a chegada, um século depois, de Lorenzo, o Magnífico. E começámos a pedir novamente contas a Virgílio entre os séculos XIX e XX, num mundo suspenso entre a euforia ditada pela modernidade recém-anunciada e o terror de descobrir em breve os seus efeitos.
Afinal, é natural: em tempos de paz e de prosperidade, pedimos a Homero que nos ensine o que é a vida: exigimos, com razão, algo mais do que uma serenidade monótona na qual ir vivendo. O nosso θυμός (thymós) para o dizer com os filósofos gregos, ou seja, o nosso “impulso vital”, a nossa fome de viver, galopa a uma velocidade vertiginosa; e se de verdade nos guia interiormente o auriga que Platão teorizou no Fedro, é por certo o cavalo negro da paixão o que agora arrasta o nosso carro, e a racionalidade do cavalo branco pode muito bem esperar.
No entanto, a cada reviravolta da história, o leitor apressa-se a arrumar a Ilíada e a Odisseia e a correr para tirar a Eneida da estante. O nosso único impulso é o medo e a necessidade intensa e desesperada de sobreviver: o nosso invisível auriga já não se coloca o problema de para onde conduzir o carro, mas como voltar a pô-lo de pé depois de o ter virado violentamente, deixando mancos ambos os cavalos. Porque é que nunca nos disseram isto sobre a Eneida? Porque em tempos de guerra, não se elaboram refinadas “edições críticas” e, em tempos de paz, só queremos seguir em frente, esquecer.
Sentados na praia aguardando o cadáver alheio, é mais do que legítimo concedermo-nos o luxo de, entre Heitor e Aquiles, escolher o lado que mais nos agrada, ou navegar pelo menu das aventuras de Ulisses, juntamente com as suas mulheres. No entanto, quando é necessário lutar para que o cadáver que desliza pelo rio não seja o nosso, é justamente aí que precisamos de Eneias. Mas porque é que, apesar de reconhecermos que é tão necessário, não conseguimos deixar de o odiar, pelo menos um pouco? Porque o herói de Virgílio nada faz para nos consolar. Na verdade, até se atreve a provocar-nos: a Eneida começa sobre ruínas, as de Troia – e mais não faz do que desmantelar tudo aquilo que cremos desejar e sentir enquanto nos sentamos sobre as nossas próprias. O medo, sobretudo. Eneias sofre, sofre em cada gesto, mas parece imune à chantagem da angústia. Nos precisos locais onde, consternados, encalhamos – mais do que justificadamente, diga-se – ele segue adiante.
Chora muito, mas ao medo responde sempre com audácia; não se subtrai ao dever de enfrentar realidades insuportáveis; não hesita em dar nome ao que até há pouco era desconhecido; enfrentar fenómenos nunca vivenciados por ninguém.
Eneias pensa, identifica, tenta compreender. Recompõe o magma indefinido do caos com o rigor da racionalidade. É precisamente por isto que, à primeira vista, Eneias parece tão detestável: tal como nós, ele não sabe o que fazer, mas fá-lo ainda assim. Tal como nós, não sabe por onde começar, mas, na dúvida, começa. É irritante, é verdade, porque não faz mais do que recordar-nos a tão intensa urgência de continuar.
Além disso, Eneias não corresponde de forma alguma ao protótipo já extinto da virilidade. É tudo menos aquele homem no comando em cujas mãos possamos depor o peso de uma nação a fundar – para lavarmos nós as nossas próprias, livres assim da responsabilidade de pensar sobre o assunto.
Eneias não comanda nada, a não ser um punhado de desgraçados como ele. Na viagem de Troia para o Lácio não faz mais nada senão tropeçar; viaja com o pai e um filho e ainda os Penates no alforge. Tivesse ele ao menos uma arma, uma fórmula mágica, um superpoder que o diferenciasse de nós, sobreviventes banais e mundanos – algo que nos poupasse ao incómodo de ter de concluir que devíamos ser tão intensos como ele…
«Deixarás toda a cousa que é dilecta / mais caramente» diz Cacciaguida a Dante pouco antes dos versos em epígrafe. Para Dante, não constitui apenas uma profecia sobre o seu destino pessoal – o exílio – mas também um testemunho direto de Cacciaguida, que viveu cerca de dois séculos antes de Dante, da dor que, mudando, se deixa para trás. Não apenas da Florença que foi, mas daquelas escadas, outrora conhecidas, tão distantes agora, tropeçando os nossos nocturnos pés em degraus ignotos, estrangeiros; de uma casa que só o é pelas paredes e pelo telhado, mas jamais doméstica, pois o seu interior não alberga nada de familiar; de uma amorosa silhueta cujos recessos sábios braços conheciam e agora, indolentes e melancólicos, não sabem o que fazer; e daquele pão tão amado que outra pessoa trinca agora, enquanto sem apetite se mordisca uma côdea, que anónimas mãos nos amanharam.
Sair ao encontro de uma mudança que não se procurou – ensina-nos Eneias – significa descobrir que não há caminho mais caro do que aquele que nos conduz a quem, desde o princípio do mundo, pertencemos.