Enquanto a bola rola e os portugueses se distraem com os sucessos da seleção nacional, os deputados do regime preparam-se para aprovar a lei da eutanásia, a que decidiram chamar “antecipação da morte medicamente assistida”, em mais um exemplo orwelliano de manipulação da linguagem que só podemos atribuir ao mau gosto ou ao humor negro. Preparam-se para o fazer, na sua esmagadora maioria, sem terem tido a transparência de o confessar junto dos eleitores que neles confiaram o seu voto, não vá o diabo tecê-las e alguém se lembrar que o poder ainda reside no Povo.

Neste mesmo País, naquele que não foi para o Qatar e onde a “morte vai poder ser antecipada”, crescem cronicamente as listas de espera dos hospitais públicos (em valores de anos para certos exames, consultas e cirurgias), os serviços de urgência apresentam frequentemente, já sem escândalo, mais de 10 horas de espera para atendimento (quando não têm mesmo de encerrar em pleno mês de dezembro) e, ao que parece, quase um milhão e meio de portugueses não tem médico de família. Também o acesso generalizado aos cuidados paliativos para os doentes que sofrem é uma simples miragem, mas a “antecipação da morte”, essa sim, passará a ser “medicamente assistida”. Um alívio.

Este mesmo País, agora na iminência de integrar a pequena elite mundial da vanguarda da defesa de mais um “direito humano”, também conseguiu o feito de entrar no pequeno escol dos países mais pobres da Europa (e a Roménia já está à espreita), tendo mesmo alcançado, enquanto a bola ainda rola, o número de quase 44% de pobres antes das transferências sociais e, depois destas, o valor de mais de dois milhões de pobres. Também eles vão poder antecipar a morte, que os senhores deputados não querem que lhes falte nada.

Este é também o segundo País da Europa onde se consome mais antidepressivos e não existe cobertura pública adequada de cuidados de saúde mental, mas onde, finalmente, no ano de 2022, o recém-empossado ministro da saúde declarou que é preciso “deixar de tratar os temas da saúde mental como um tabu”. Valha-nos isso, porque até agora ninguém tinha reparado que existe este problema entre nós, nem mesmo o primeiro governo de que o senhor ministro fez parte (e este já é o segundo…). Temos agora um CEO do SNS (mais uma paródia da linguagem) a quem certamente este problema não escapará.

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E os velhos, senhores deputados? Também vão ficar satisfeitos com a aprovação desta medida, humanista com certeza, destinada a acabar com o sofrimento humano, no País com as pensões de reforma entre as mais exíguas da União Europeia, com lares geralmente inapresentáveis, onde abundam residências ilegais para idosos em moradias e apartamentos esconsos e a percentagem de velhos a viver sozinhos alastra nas aldeias desertificadas e nas cidades.

É a este povo, sem acesso a cuidados de saúde adequados (muito menos os paliativos), geralmente pobre e envelhecido, sem rede social e familiar de amparo, muito abandonado à sua sorte, que será agora dada a oportunidade de recorrer à eutanásia.

Claro que há requisitos, há procedimentos e tudo o resto, que a coisa começa sempre por ser restritiva (aplicar-se aos casos excecionais, ao chamado “sofrimento intolerável”, que não é objetivamente definível) e depois se arrasta para outras formas de sofrimento, porque todo o sofrimento merece o nosso respeito. Não cometo a injustiça de ocultar isto, mas é chocante o modo como se ignoram os pareceres das ordens profissionais, do Conselho de Ética para as Ciências da Vida, das faculdades de medicina, de todas as confissões religiosas, e se quebra um princípio de civilização deste modo, às escondidas do Povo e sem que o Povo sobre ele possa decidir.

Não há dúvida de que a antecipação da morte, ainda para mais medicamente assistida, é tudo o que os deputados do regime têm para oferecer ao País. É a desistência de tudo, tal como o regime parece já ter desistido de tornar Portugal um País decente e apresentável.

P.S. – A questão da constitucionalidade da lei discutirei noutro texto, mas hoje, enquanto a bola rola, apeteceu-me este desabafo.