Quem sou eu? Adoro música e, por isso, caro leitor, apresentar-me-ei como se este artigo fosse um disco de vinil: o lado A, mais institucional, e o lado B, mais informal, ao longo deste artigo, ilustrado com exemplos da minha prática profissional, porque acredito que os professores se definem essencialmente pelo que fazem com e para os seus alunos.
Lado A. Nasci em Évora, cresci em Tondela, licenciei-me em Filosofia na Universidade do Porto, dei aulas em Pinhel, Guarda, Vila Real de Santo António, Faro e Portimão, onde me fixei e resido. Sou mestre em Filosofia da Natureza e do Ambiente, pela Universidade de Lisboa, com uma dissertação intitulada “O Pensamento Ecológico de Alberto Caeiro”. Tenho dois livros didáticos publicados, sobre Kant e filosofia da ciência, criei o blogue “A Filosofia vai ao Cinema” (entretanto desativado) e um canal no YouTube com podcasts áudio sobre diversos temas do programa de Filosofia do secundário. Proferi palestras nas universidades de Lisboa e Évora e dou formação a professores, com quem partilho as minhas ideias e experiências realizadas com os alunos. Fui um dos finalistas ao Global Teacher Prize Portugal 2023.
Cheguei à paixão de ensinar vindo de uma outra: o amor à Filosofia. O deslumbramento pela Filosofia surge cerca dos 14 anos, suscitado por livros de Sartre, Camus e Nietzsche e o problema filosófico do livre-arbítrio, o meu primeiro amor filosófico, a que volto regularmente com o carinho especial que dedicamos ao primeiro amor. O namoro dura dois anos no liceu, o noivado assumido prolonga-se pelos quatro de Faculdade. Creio poder dizer que me casei oficialmente com a Filosofia em outubro de 1984, em Pinhel, onde me apresento para dar aulas pela primeira vez. Em vez do tradicional “pode beijar a noiva”, ouço do presidente do conselho diretivo um lacónico «Aqui tem o seu horário, tem uma aula logo às sete e meia da noite». Começava aqui a minha aventura como professor. Ao longo dos anos, a ligação cada vez maior com os meus alunos estará na origem de uma metamorfose: no amor pela Filosofia estava a nascer a paixão por ensinar.
Ser professor: o que é isso, afinal? Quais são os “sintomas” desta paixão? Antes de mais, amar o conhecimento. De facto, o professor tem de ser um eterno aluno. Essa condição, ou manter-se-á durante toda a sua vida ou, se tal já não acontecer, o professor que havia nele ter-se-á extinguido algures lá mais para trás na sua vida, sem que disso se tivesse apercebido. Em segundo lugar: ser otimista. Acaso alguém imagina um médico que não acredite nos medicamentos que prescreve? Do mesmo modo, é inconcebível que um professor não seja otimista. Temo que, se um professor perder a esperança na evolução e crescimento dos seus alunos, a sua função deixe de ser positiva e inspiradora e se transforme, pelo contrário, num bloqueio perturbador a que tal aconteça. Finalmente: a capacidade de “re-nascer” a cada ano que passa. Vou contar-lhe uma história. Durante anos senti a ameaça da rotina e do tédio, provavelmente a “doença profissional” dos professores. Até que ocorreu em mim uma inversão radical: passei a encarar cada início de ano letivo não do meu ponto de vista, professor experiente que, mais uma vez, vai começar uma temporada, mas do ponto de vista dos alunos que, pela primeira vez, iniciam na Filosofia a sua própria caminhada. Por isso, quando os meus alunos me agradecem por lhes proporcionar experiências novas e a descoberta de capacidades que têm e que, muitas vezes, desconheciam, eu respondo dizendo que quem está em dívida sou eu por me inspirarem e possibilitarem que eu próprio renasça a cada ano letivo, a cada turma nova, a cada aluna e aluno novo.
Agostinho da Silva escreveu um dia: “Só há homem quando se faz o impossível”. E que impossível é esse? A utopia. Sim, caro leitor, a utopia. Não no sentido de algo inalcançável, mas precisamente o oposto: um desejo que, sendo realizável, ainda não existe como tal no mundo. Posto isto, quero apresentar-lhe uma das “utopias” em que vou apostar, ancorado no entusiasmo dos meus alunos, para o futuro imediato: uma sala de aula especial.
Imagine uma caixa. Vista de fora é uma caixa normal, mas ao entramos percebemos que nela pode acontecer magia. É uma “caixa mágica” para aulas “fora da caixa”. As paredes estão pintadas com murais criados e executados pelos alunos. Nesta sala, são os equipamentos que se adaptam às pessoas e não o contrário. A tecnologia está presente, mas não é um fim em si mesmo. Coexistirá harmoniosamente com diferentes objetos, numa revalorização da dimensão física das coisas, palpável, como forma de travar a ameaça da imaterialidade do mundo. A disposição da sala será em “U”, sem estrados, para que todos se possam ver e interagir, rompendo desse modo com a visão tradicional de sala de aula concebida para ter o professor como centro. Assume-se, deste modo, que a disposição do espaço potencia a criatividade e coloca desafios a professores e alunos: o professor que vai para esta sala dará decerto uma aula diferente e criativa e os seus alunos terão decerto essa expetativa. Ao fundo da sala, existirá um espaço de lazer com uma mesa e almofadões feitos pelos alunos e as suas famílias. Servir-se-á chá para tornar os intervalos mais agradáveis. Será recuperado um armário-estante já usado para nele colocar uma biblioteca, objetos a utilizar nas aulas, dvd´s, discos em vinil e cd´s e pedir-se-á o contributo dos pais e da comunidade.
Na biblioteca da sala criar-se-á uma modalidade inovadora que consiste em escolher um livro que vai circulando entre os interessados, com a particularidade de cada um de nós (professor e alunos) nele poder escrever o que quiser, desde notas a desenhos. No final do processo, reunir-nos-emos e comentaremos o livro e os comentários que fomos fazendo. Falaremos, portanto, das marcas que o livro deixou em nós, mas, também, das marcas que deixámos nele. Chamar-se-á ao projeto “Livro-Trânsito”: um livro em trânsito que é um livre-trânsito para o espírito crítico, a criatividade e o amor à leitura e ao livro como objeto físico, que se pode ver, manusear e cheirar.
A sala será profusamente embelezada com plantas, que os alunos trarão de suas casas e pelas quais assumirão a responsabilidade de regar e tratar. A sala será no rés-do-chão, acessível e inclusiva, e nela será aberta uma porta para o exterior, para que, quando o tempo o permitir, as aulas sejam dadas ao ar livre, num espaço de “esplanada” que será embelezado com plantas e mobiliário de exterior recuperado. Há, ainda, um outro desejo. Tal como já acontece na minha escola, gostaríamos que todas as escolas tivessem animais adotados (temos, para já, dois gatos, o “Manel” e a “Teixeira”, batizados pelos alunos). Uma sala de aula com gatos, jardim e esplanada? Porque não? As ideias ao ar livre respiram melhor…
Bom, caro leitor, esta “carta” já vai longa. Antes de me despedir, há um esclarecimento a fazer em relação à foto que escolhi para ilustrar este artigo: “Ninguém vai chumbar a Filosofia!”. A frase tem três anos e escrevia-a no quadro como um desafio para os meus alunos (e eu próprio), no final de uma aula do 10.º ano em que entreguei os primeiros testes, cujos resultados não foram brilhantes. Desde aí, nunca mais um aluno meu reprovou a filosofia.
Facilitismo? Exatamente o contrário. Fácil é avaliar os alunos quase exclusivamente através de testes escritos formatados, uma dádiva para quem escreve bem e um martírio para quem preferiria provar as suas capacidades também de outras formas. Difícil e mais trabalhoso, para o professor e os seus alunos, é seguir outro caminho, em contramão: avaliar todas as competências e conhecimentos, mas de forma diferenciada, tratar diferente quem é diferente, diversificar os instrumentos de avaliação para além dos testes convencionais (ensaio, projeto pessoal, portefólio, projeto de turma, etc.), permitindo, desse modo, que cada aluno, sem prejuízo das aprendizagens fundamentais, potencie as suas capacidades, cresça e se realize como estudante, pessoa e cidadão. Quando isso acontece, é possível aos alunos ultrapassar as fronteiras da sala de aula e deixar a sua marca no mundo, como provou uma das minhas turmas da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, com o lançamento de uma petição nacional que veio a ser aprovada, por unanimidade, na Assembleia da República, instituindo o dia 25 de maio, data de nascimento do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles, como o Dia Nacional dos Jardins.
Sonhar é preciso e é possível.
Professor de Filosofia. Finalista do Global Teacher Prize Portugal 2023.
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.