Li recentemente uma notícia que me deixou profundamente perturbada. Deu início em Paris o julgamento que opõe os familiares das vítimas do voo AF447 da Air France, a companhia aérea Air France e o fabricante de aviões Airbus. Este acidente, em 2009, foi uma perda irreparável para os familiares e amigos destas 228 pessoas que, passados 13 anos após a ocorrência, não conseguiram ainda completar o processo de luto. Acredito que tanto para a Air France como para a Airbus os danos que emergem deste novo julgamento são irreparáveis, não pelos valores das indemnizações em causa, mas pela perda de credibilidade em matéria de segurança que passa para o mercado altamente regulado neste domínio.

Como é do conhecimento de todos, a aviação é um setor que opera num mercado cada vez mais hostil e competitivo, com margens de lucro bastante esmagadas e em profunda transformação com a crise dos combustíveis. Neste contexto volátil, a recuperar do impacto da Pandemia do Covid-19 e com a guerra na Ucrânia, a Air France e a Airbus vêm-se novamente no epicentro de um tornado com a abertura do processo relativo à queda do voo AF447 da Air France com o Airbus A330. Este voo fazia a ligação entre o Rio de Janeiro e Paris no dia 01 de junho de 2009 e despenhou-se em pleno Oceano Atlântico. O acidente ainda hoje suscita um conjunto de questões que exigem respostas credíveis por parte das autoridades competentes e pelas duas empresas envolvidas no acidente.

As famílias, os profissionais da área da viação, as associações sindicais e a sociedade de forma geral não acreditam que estes eventos sejam obra do acaso. Foram 228 vidas que pereceram entre passageiros e a tripulação do Airbus A330, que necessitam de ser respeitadas e honradas mas, para que tal seja possível, é necessário colocar os interesses económicos para trás das costas. Assim sendo, pergunto-me se serve de explicação atribuir a responsabilidade pela ocorrência do acidente ao “erro humano”? Não podendo a equipa de pilotos estar cá para explicar o conjunto de procedimentos adotados, nem o comandante do Airbus A330 pelo conjunto de opções que tomou, não vos parece ser o caminho mais óbvio para encerrar o processo? Fiquei completamente estarrecida quando li que, no processo inicial em 2019, a conclusão que emergiu da instrução por parte dos dois juízes que conduziram o inquérito foi que tinham “existido erros de pilotagem”, ou seja, o “famoso Erro Humano”.

À luz das teorias mais recentes sobre segurança, e que inclusive são amplamente trabalhadas nestes processos de Investigação e Análise de Acidentes, diz-se que o “erro humano” é uma das muitas variáveis a considerar neste tipo de acidentes. Porquê? Porque existe um conjunto de fatores contextuais a montante e a jusante que têm de ser considerados nestes processos (equipamentos, manutenção, procedimentos, check-list, comunicação, feedback, dispositivos de segurança). Quando falamos em fatores humanos nestes processos de Investigação e Análise de Acidentes não estamos a falar só dos pilotos ou do comandante, temos de considerar os vários contextos no período que antecede e o momento em que ocorre o acidente. Não podemos focar a investigação e análise deste acidente (ou de qualquer outro acidente) apenas na atuação da equipa de bordo, mas também no papel desenvolvido pelos investigadores nestes processos de investigação e análises de acidentes, nos juízes que instruíram o processo, o papel da Air France (que pretende demonstrar que não tem “culpa criminal” no acidente), o papel da Airbus (que não comenta), tal como a manipulação da opinião pública. Parece-me que a Presidente da Associação de Familiares das Vítimas do Acidente, nas declarações feitas à France-Presse, tem razão quando diz que “o julgamento inicial foi dos pilotos” e espera que agora “o julgamento recaia sobre a Air France e a Airbus”, e que inclusive acrescenta que “confia na imparcialidade e no exemplo” (Danièle Lamy).

Contudo, os resultados a que a equipa de especialistas em Investigação e Análise de Acidentes do voo AF447 chegou são bastante diferentes das conclusões iniciais, que remetiam a causa do acidente como tendo sido “erro humano”. Estes acreditam que, de acordo com a informação recolhida, depois de devidamente analisada com base nos vários modelos de segurança teóricos mais recentes, devidamente operacionalizados pelo conjunto de ferramentas disponíveis, apontam para uma falha ao nível das sondas de velocidade. Para os especialistas “as sondas de velocidade congelaram o que deu origem a uma desregulação das medidas de velocidade do Airbus A330. Tal facto, deu origem à desorientação dos pilotos que não conseguiram evitar a queda da aeronave”.

No meu entendimento, o que acho importante reter em todo este processo, que se perpetua no tempo, e com a nova batalha judicial que se avizinha (prevista até dia 08 de Dezembro de 2022), na tentativa de condenar a Air France e a Airbus pelos “homicídios involuntários” das 228 pessoas de 34 nacionalidades distintas, desvirtua o foco do problema. No meu entendimento, como especialista em segurança, o foco deveria consistir em mostrar as aprendizagens que foram feitas para evitar desastres idênticos. Sabemos que as consequências destes eventos podem ser catastróficas para os passageiros, para a tripulação e para o meio envolvente. Mas, mais importante que distribuir culpas, é apurar responsabilidades para que estes eventos não voltem a ocorrer, mas acredito de forma global existem muitas aprendizagens a serem realizadas ao nível da segurança. E nós, passageiros, precisamos de confiar na tecnologia e no que faz de nós tão especiais, sermos humanos! Por isso, recuso a tese de “erro humano” para explicar os acidentes!

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