Em 2014, na publicação “40 anos de Políticas de Educação em Portugal”, tive a oportunidade de escrever sobre a sociedade de informação e do conhecimento na política educativa. O objetivo foi fazer a história de políticas públicas de investimento em recursos TIC na educação. Não foi por distração ou por um assomo de preguiça que, tendo identificado as primeiras medidas de em meados dos anos oitenta, com o velhinho Programa Minerva, a última que, a meu entender, mereceu lugar no friso histórico das políticas públicas dedicadas ao investimento em recursos tecnológicos nas escolas datou de 2009. Foi executada entre 2009 e 2011, sob a chancela do Plano Tecnológico.
O Plano Tecnológico da Educação terminou em 2011. Não foi um exercício isento de falhas. Teve, contudo, o mérito de procurar responder à necessidade de promover um choque tecnológico nas nossas escolas. Alguns adquiridos da época parecem hoje irrelevantes. Mas não são. A existência de uma infraestrutura de rede nas escolas, o acesso generalizado à internet, a disponibilização de equipamentos como computadores e videoprojetores garantiram, à data, as condições necessárias para que as escolas não fossem ilhas arredadas do acesso à tecnologia. É esta, aliás, uma boa parte dos recursos que permaneceu até hoje.
Mas a tarefa ficou incompleta. Era sabido. Não bastava fornecer os meios e as condições de acesso à tecnologia. Era crucial potenciar a sua utilização de uma forma que garantisse que o processo de ensino-aprendizagem seria o motor do que agora designamos por transformação digital. A história foi interrompida e não deveria ter sido.
De lá para cá, o que tivemos foi um deserto. Uma década perdida em investimento. Uma década de degradação das condições de ensino e aprendizagem com tecnologia nas nossas escolas. Sob o pretexto da crise económico-financeira e da sustentabilidade orçamental, os recursos do sistema afetos a esta matéria foram reduzidos à expressão mínima possível: a gestão dos ativos e o fornecimento de internet às escolas. E quando me refiro a recursos, não me refiro apenas a recursos orçamentais alocados a investimento. Refiro-me também a todos os outros: ao capital humano, à sua formação e aos recursos organizacionais. É um facto que os recursos são finitos. Por essa razão, a política e a sua nobreza assentam no difícil exercício de fazer escolhas. As escolhas da última década ignoraram a necessidade de manter a continuidade do investimento tecnológico nas nossas escolas. Esse investimento, para ser reprodutivo face ao que já havia sido realizado, deveria ter envolvido várias dimensões: tecnologia, capital humano, uma organização escolar com estruturas capazes de promover a transição digital nas escolas e condições de governação deste tema de política educativa a nível central. Nada disto foi feito.
Na ausência de uma política pública, houve lugar, aqui e ali, a investimentos, planos, projetos, sobretudo de índole municipal, que, não sendo generalizados, não garantem, nos diversos territórios educativos, condições de equidade ao acesso aos recursos necessários para o funcionamento das escolas num ambiente digital.
O encerramento de escolas durante a pandemia veio tornar evidente o resultado de uma década perdida e demonstrar como a descontinuidade das políticas públicas em educação se paga muito caro. A desigualdade nas condições de promoção e de acesso ao ensino a distância vieram colocar em risco o desempenho da escola enquanto promotora de equidade. Talvez tenhamos arriscado perder o que construímos na última década com o objetivo de garantir equidade no acesso a uma educação de qualidade para todos.
O Plano de Ação para a Transição Digital, aprovado pelo Governo em março e publicado numa Resolução do Conselho de Ministros em abril, contempla, uma década depois, uma componente de ação dedicada à Educação Digital. Nela consta uma medida emblemática designada por Programa de Digitalização para as Escolas. São identificadas áreas de atuação: disponibilização de computadores individuais, internet móvel para alunos e docentes, acesso a recursos educativos digitais de qualidade, a ferramentas de colaboração em ambiente digital, exames, provas e sua correção em formato digital, formação de docentes. O programa que deveria consubstanciar estas medidas, com o objetivo de promover a transformação digital das escolas, seria desenvolvido por um grupo de trabalho liderado pela área governativa da educação.
Estávamos em plena pandemia e os seus efeitos eram já visíveis na desigual possibilidade de acesso à escola. Sabíamos por isso que, mais uma vez, o foco teria de ser o do fornecimento de equipamentos que minimizassem o dano causado por meio ano letivo realizado em condições muito difíceis para muitos alunos, pais e professores. Não esperávamos era que tivéssemos passado o primeiro período letivo em condições equivalentes àquelas em que terminámos o ano letivo passado. Salvou-nos o facto de, para muitos, a escola se manter presencial. Não sabemos quantos não tiveram a mesma sorte, nem durante quanto tempo.
Em todo o caso, cedo ou tarde, os computadores e ligações móveis à Internet chegarão às escolas. A universalização da escola digital constante do Programa de Estabilização Económica e Social veio resumir, para já, a digitalização das escolas aos equipamentos, formação de professores, desmaterialização de manuais escolares e produção de recursos digitais. Quanto ao mais, o Programa de Digitalização das Escolas sabe a pouco. Mais de uma década depois, pergunto-me: que lições tirámos das políticas anteriores? Fará sentido fazer igual?
Caderno de Apontamentos é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.